terça-feira, 26 de julho de 2011

A louça suja e a coerção social

Morei durante muitos anos em república universitária. Fruto de uma constelação feliz de elementos: vivendo em cidade distante da família, pouca grana, com muitos iguais a mim na mesma situação e estudando feito doido; fazia parte do processo aprender a viver sem a estrutura familiar e me virando como meu próprio agente doméstico.

Claro que como morador de republica masculina, praticamente debutantes na arte de se virar sozinho na cozinha e dividindo a casa com vários outros colegas na mesma situação, coisa boa não pode sair. O fato é que a louça era uma fauna muito articulada. Ninguém era muito amigo da bucha e do sabão e as histórias são as mais diversas a respeito dessa parte da casa que nos era inóspita. Uma vez, a copa da pia chegou a descolar por conta do excesso de louça acumulada. Em outra situação, tomamos uma medida drástica, quebramos inúmeros pratos e copos, deixando apenas uma dúzia de cada pra que as pessoas se obrigassem a lavar os sujos ao invés de sempre buscar um limpo no armário antes de pensar em lavar e usar ou, corretamente, usar e lavar.

O fato é que morando na Casa dos Dez – às vezes com dez, às vezes com onze, já chegou a doze – nunca se sabia exatamente quem havia começado o caos. Mas, na medida em que o monte de louça suja começava a crescer inevitavelmente ninguém mais se dava conta de lavar. Aí, enquanto a faxineira não aparecia nada de limpar. Dona Jô chegava a gastar umas duas horas só pra dar ordem na cozinha. O resto era administrável... eu acho!

Vivendo e aprendendo. Confesso que nunca fui dos mais regrados na louça, mas também nunca me queixei de limpá-la. Não sou daqueles que uso e limpo – deixar pra um pouco mais tarde faz bem, afinal depois do almoço dá uma preguicinha. Diante disso, o fato é que outro dia, voltei à república e muita coisa havia mudado. Moradores diferentes, alguns insistentes antigos, mas depois de anos de transformação, converteu-se em uma habitação de pós-graduandos, gente mais velha, bolsistas com alguns recursos a mais que aquele bando de pé rapado dos meus tempos de graduação. E a louça! A cozinha sempre limpa a ponto de eu me sentir na obrigação de manter...

É um pouco obvia a conclusão. Se têm lá cinco copos sujos, oito pratos, restos de comida, talheres, panelas, tudo engastalhado na louça, você nem vai se preocupar em deixar limpo seu pratinho e copinhos, que só vão se somar ao monte. Mas, se está tudo limpo e organizado, observar que é preciso manter assim passa a ser uma prerrogativa. Ninguém precisa te dizer, não há informação ou discurso transmitido, mas você facilmente percebe pelo ambiente construído.
 
Nos tempos áureos de república, um começava, nem sempre o mesmo, nunca pelo mesmo motivo, mas bastava um começar a deixar a louça suja pra que o vício se espalhasse como um vírus. Também se tornava uma prática: se ninguém limpa por que eu vou me preocupar em limpar? Confesso que era mais cômodo assim  só em um primeiro momento, depois a bagunça geral gerava incômodo coletivo e tornava-se pauta de inúmeras reuniões que muito se falava e pouco se resolvia.
A coerção social é assim, não precisa ser dita, acionada, agitada, sequer precisa ser agressiva, mas funciona quando você sente a necessidade de reproduzir uma prática independente da sua vontade. Na medida em que essa prática é repetida inúmeras vezes, na sua cabeça ela já se torna automática. Não importa o quanto você usa ou faça, faz parte da prática daquele lugar agora lavar e limpar depois de sujar, confesso que para quem morou em uma época em que a prática da organização e limpeza eram pouco usais, praticamente desnecessárias, fica um certo estranhamento na atualidade...
Mas, caro leitor, claro que a louça é só uma alegoria das mil faces de tantas coerções que a sociedade nos apresenta.

Nenhum comentário: