terça-feira, 13 de julho de 2010

Flor do Deserto

Não sou de indicar filme. Sou até contra aquela história de: “esse você precisa assistir”. Precisar, ninguém precisa. Muita gente viveu muito bem sem assistir Casablanca – embora eu particularmente tenha gostado muito, não acho que se tenha que fazer alarde aos gostos pessoais. Dadas as duas frases iniciais, é hora de me contradizer: você, que está lendo este texto e ainda não assistiu, precisa assistir “Flor do Deserto”. Não só recomendo, indico, como também acho que todos deveriam assistir. É o tipo de filme que faz diferença; se bem analisado. É verdade que tem sérios riscos ser reforçar nosso eurocentrismo ocidental, mas é um exemplar raro de sensibilidade, beleza, lição sobre o mundo e humildade.
Flor do Deserto é a filmagem do livro homônimo de Waris Dirie; uma espécie de autobiografia da modelo. História de uma menina somalí prometida em casamento aos 12 anos de idade, que foge de uma família nômade para a Capital Mogadíscio, dali para Londres, onde é descoberta pelo fotógrafo Terence Donovan e vai para o mundo da moda.
Desert Flower não é nem deve ser vista como uma história de cinderela, gata borralheira ou coisa assim. Só seria analisada assim aos fracos de visão. Certamente não é essa a intenção do filme. Contar a história de uma garota somali que venceu na vida é apenas o pano de fundo para denunciar um problema muito grave que aflige cerca de 6.000 mulheres ao dia no mundo: a mutilação da genitália feminina. O ritual que acompanha o ato, uma tradição de alguns grupos nômades da religião muçulmana que retira o clitóris das mulheres ainda crianças e costuram suas vulvas com o intuíto de preservar sua pureza. Este ato é uma violação injustificável mesmo sendo característica de uma cultura milenar.
Vejam senhoras e senhores, Alerto: o filme não pode ser visto pelo alto de nossa pretensa superioridade ocidental. Devemos respeitar culturas com tradições milenares e o modo como se relacionaram e se relacionam com seus ambientes. Intervir, violar essas culturas, opinar demais ou impor comportamento sempre acaba em confusão. A Europa em particular (e as potencias do resto do mundo em geral) já violou demais e criou muitos problemas à África. Não se trata de condenar, julgar ou ridicularizar a prática. Mas, é necessário exigir mudanças. Em 2007 o Egito criminalizou a mutilação da genitália feminina. A campanha internacional da ONU merece crédito e respeito.

Waris Dirie foi a primeira mulher a condenar publicamente a prática. Esta mutilação, à final, trata-se de um ato irreversível. A mulher submetida a isso nunca sentirá prazer sexual. Corre sérios riscos de problemas de saúde, além de um trauma psicológico violento. Condenar uma criança a esse fardo é furtar-lhe o poder de escolha. Além da irreversibilidade do ato ser um ponto forte da condenação. Trata-se de discutir as condições de higiene, e os riscos à saúde das crianças, seus traumas etc, e a questão do poder de escolha - talvez esta ultima seja uma questão antropologicamente contoversa.
O ritual pode se justificar cultural, funcional ou socialmente segundo uma tradição cultural que devemos respeitar. Mas, o mundo, desde tempos primordiais "mudou". É uma questão delicadíssima em que o consenso é difícil de aparecer. Antropólogos de todo o mundo se desentendem sobre a questão dos limites da imposição aos costumes dos povos. Estão em questão os limites da intervenção ocidental, os limites das ações ditas humanitárias. Dificil dizer onde a intervenção é necessario e onde é invasiva.
Mas, neste caso, mesmo Jean Claude Levi-Strauss, maior antropólogo relativista, fundador do estruturalismo, mente brilhante do século XX foi uníssono na condenação à mutilação da genitália nesses rituais. O fundador de uma visão relativista do mundo afirmando que mesmo o relativismo tem seus limites.
Waris Dirie juntou-se a BBC para um documentário sobre sua história de vida. Fez parte da série “The day that changed my life” – produziu A Nomad in New Yourk que promoveu o reencontro da modelo com sua família. Ainda não consegui localiza o filme. Mas, minhas buscas na internet continuam (quem encontrar me passa!).
Concluo retomando dois pontos fundamentais e que tornam o filme imperdível – mesmo eu próprio sendo contra essa máxima dos filmes necessários. Primeiro, não assista o filme como a história de uma princesa que ganhou na vida depois de muito sofrer. Waris Dirie não precisa de sua aprovação, nem do seu sentimentalismo barato – o filme tem questões mais importantes a tratar, a modelo é um veículo e não a história central do filme. Dois, ou segundo: devemos sempre tomar cuidado com nosso egocentrismo ocidental. Considerar aquelas culturas atrasadas ou impróprias se baseado exclusivamente em um ritual é ridículo. Evolução, progresso e desenvolvimento são questões próprias ao mundo eurocêntrico e nunca universais. Com certeza, se procurarmos um pouco, nós vamos encontrar rituais bastante bárbaros em nossa cultura. Temos ganhos e perdas a partir de nossas tradições, não somos nem piores e muito menos melhores que os povos nômades africanos.
  1. Para quem quer saber mais. Acesse a Fundação Waris Dirie
  2. Livro: Desert Flower – Waris Dirie e Cathleen Miller- Livraria Martins Fontes: R$ 38,00

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