terça-feira, 4 de maio de 2010

Trocas e conluios: políticos e técnicos no sistema de governo brasileiro

As características do sistema político brasileiro são: presidencialismo, federalista, bicameral, multipartidário com representações proporcionais. Estas características somadas são consideradas problemáticas pela maior parte dos cientistas políticos. Porque o sistema político brasileiro não garante um governo que tenha automaticamente maioria no Congresso. Cada presidente eleito precisa compor maioria através de uma negociação que envolve o próprio governo federal, estados e partidos políticos. No final o que deve levar em conta extrapola os resultados de uma disputa eleitoral porque este não garante de nenhuma maneira proporcionalidade de representação ao chefe de governo no país - então entra em cena um jeitinho tipicamente brasileiro de se fazer política.
Se considerarmos, por exemplo, as eleições parlamentaristas (como a que esta ocorrendo na Inglaterra), o partido que tem mais cadeiras na Câmara dos Deputados tem também a prerrogativa para nomear o Chefe do Executivo (primeiro ministro). Se por um lado a eleição para o primeiro ministro é indireta, a maioria é automaticamente composta pelos vencedores da eleição e o chefe do governo tem facilidade de trâmites no Congresso (talvez a atual eleição exija o consorcio ao estilo francês). Na França, onde funciona um parlamentarismo multipartidário, os governos em geral são consorciativos, ou seja, há um consórcio, negociado antes da nomeação do primeiro ministro, para compor a maioria: mais de um partido governando e a aliança entre os partidos é o que garante a eleição do primeiro ministro. E o presidente eleito paralelamente é apenas o Chefe de Estado.
No presidencialismo o Chefe de Governo é também o chefe de Estado (representa o país nas relações internacionais). Neste sistema as eleições proporcionais para o Congresso são independentes das eleições para o governo. Assim, pode ocorrer que as eleições legislativas tenham um resultado e a executiva outro, isso proporcionaria ao chefe de governo problemas para aprovar suas leis junto ao legislativo. Nos EUA temos um sistema assim: presidencialista, federalista, bicameral e proporcional. Mas, é um sistema bipartidário. Como republicanos e democratas são as opções mais plausíveis dificilmente acontece de um partido ganhar o governo e não vencer também no Congresso. O que é mais comum é ter maioria simples – pouco mais da metade da câmara baixa – só às vezes acontece de um partido conseguir maioria qualificada, ou seja, 2/3 das cadeiras, e então ter facilidades para governar.
O problema no Brasil começa porque são hoje 12 partidos políticos com representação na Câmara dos Deputados em Brasília. Das 513 cadeiras, nenhum partido tem mais que 100 deputados. Se considerarmos os quatro grandes: PMDB, em 2006, elegeu 91 deputados; PT elegeu 82, PSDB 61 e DEM 60. Juntos os 4 maiores partidos tem 294 dos 513 votos – sobram 219 cadeiras para serem rateadas em 8 partidos. E para termos 2/3 é preciso 342 deputados. No caso brasileiro, como as eleições para presidente ocorrem independentemente das eleições para deputados e as opções partidárias são inúmeras, temos sempre um presidente com uma representação muito baixa no Congresso. O que o obriga a fazer “coalizões” de governo (“presidencialismo de coalizão” é o termo empregado por Sérgio Abranches para caracterizar o sistema de governo no Brasil da Nova República; ver revista DADOS de 1988).
O presidente então passa a compor seu governo com um olho na representatividade da Câmara dos Deputados para que os partidos que participem do governo ajudem o executivo a compor pelo menos uma maioria simples na Câmara. Assim, o PT em 2006, que venceu as eleições para executivo, mas conseguiu apenas 82 deputados, tem que compor seu governo com outros partidos para atingir pelo menos 257 deputados. Ou seja, teve que correr atrás de outros 175 deputados entre as possíveis possibilidades de composição de governo. Hoje o PT governa com uma base de apoio legislativo de 7 partidos. Assim os 7 partidos têm representação no seu governo, mas já chegou a 9. No oito anos de governo FHC, a base começou com 4 partidos de apoio, chegou ao máximo de 6, mas terminou com 3. Outro ponto importante é a política de governadores. O presidente busca apoio de governadores que indicam representantes no governo e recebem apoio federal e em troca disso pressionam a bancada do estado para apoiar o governo. É um jogo difícil que necessita de vários cálculos e dá margem a muitas manobras e favorecimentos. Abranches defende que esse sistema é frágil, falho e instável. Sabemos, pelo que se lê nos jornais, que também suscetível à corrupção.

Foi essa minha aula sobre os sistemas políticos que se desenvolvia na ultima sexta feira na faculdade. Destaquei as particularidades do sistema político brasileiro em relação a alguns outros, mostrei como o sistema funcionava a partir das suas características e suas falhas. Desenvolvi depois comentários a respeito de como o executivo no Brasil é considerado mais importante que o legislativo e a capacidade do executivo inclusive de legislar, com emendas constitucionais, medidas provisórias, projetos de lei complementar etc. Enfim, mostrei como, para isso, é importante apoio no legislativo. É importante ressaltar que em outros lugares como nos EUA o executivo não tem tanta margem de manobra como no Brasil. Por exemplo, para negociar questões internacionais o executivo lá precisa do mecanismo de fast-track para negociação internacionais. Sem isso não nem pode sequer negociar ou assinar compromisso internacionais ou acordos sem que o congresso estabeleça limites pré-fixados – e praticamente nunca o Congresso dá facilidade de passagem ao executivo; o que torna o papel de um deputado ou senador bastante importante por lá. No Brasil, o governo pode fazer acordos na hora que bem entender, depois de feitos, fica difícil votar contra a ratificação, é inclusive uma forma de pressionar o Congresso.

Enfim, enquanto eu defendia que há em nosso sistema de governo esta particularidade ímpar onde o executivo sobrepõe-se ao legislativo, em contrapartida tem que barganhar cargos e favorecimentos para o apoio legislativo, já quase no final da aula, uma aluna chamou a atenção para um dado do texto. Em dois momentos a nomeação de figuras “técnicas” superou a nomeação de políticos para os ministérios. Foram nomeados no ano de 1994, governo Itamar Franco, 76% dos ministros não partidários (ditos técnicos) e entre março e dezembro de 2002, 63,2% ministros “técnicos” no governo FHC (Informações contidas em “O Poder Executivo, centro de gravidade do Sistema Político Brasileiro”, texto de Octávio Amorim Neto, contido no livro: SISTEMA POLITICO BRASILEIRO: uma introdução. Avelar, L. & Cintra, A. O. (orgs). O questionamento era exatamente esse: se é assim, porque nesses dois momentos o presidente nomeou técnicos? Nas entrelinhas havia um questionamento: será que não dá pra fazer sempre? Por que nesses momentos temos a preponderância de técnicos? Então, como ficaria o conluio governamental se ele existe?

Aí, respondi imediatamente o que é mais usual: são exceções. A nomeação dos ditos técnicos excepcionalmente supera a margem de 25% ou 30% da composição do governo. Além disso, os cargos mais específicos, como presidente do Banco Central, Ministro da Fazenda, ou outros ministérios mais “apagados” como Cultura, Esportes passam para os ditos “técnicos”. Mas, esses dois momentos em 20 anos são poucos: a regra é nomear ministros de outros partidos em troca de apoio legislativo, ou conseguir parceria com um governador para que ele pressione a bancada do seu estado para apoiar o governo. O que não impede de alguns momentos exceções acontecerem. Além disso, muito cuidado com essa história de “técnico”. Nem sempre (talvez quase nunca) o técnico por ser um ‘especialista’ na área vá ser um bom ministro. Porque os ministros são figuras políticas, que precisam de apoio técnico (evidentemente têm assessores das diversas áreas para isso), mas são atores políticos. Imagine um ministro “técnico” do Meio Ambiente: amanhã ele extingue o uso de sacolas plásticas nos supermercados. Pode até ser uma boa decisão técnica, mas vai encontrar uma rejeição e o protesto de boa parte do eleitorado, que exigiria uma posição mais ponderada, dado o impacto que a decisão ‘técnica’ teria na vida das pessoas. Ser político significa entre outras coisas ter uma noção de representatividade exigida pelo contato com os diversos estratos sociais que nós técnicos na maioria das vezes não temos. Portanto, em primeiro lugar é importante não subestimarmos o papel dos políticos; não é esse o problema.

Mas, no caminho de casa, eu pensava: a pergunta tinha muita pertinência. E, embora eu defendesse com razão o processo: eram momentos de exceção e não tinham força argumentativa para contrariar a dinâmica do sistema; algum fator (ou conjunto de fatores) proporcionou que esses momentos de exceção acontecessem. Eu me peguei pensando na viagem de volta: quais fatores seriam? No buzão – sim senhoras e senhores, vou trabalhar de ônibus, porque além de ser mais civilizado e mais rápida a locomoção de transporte público em São Paulo, ainda tenho o privilégio de revisar minhas aulas à caminho, posto que o chofer lá na frente que se preocupe com o trânsito. Pois bem, no buzão eu me perguntava qual era a interferência...

A resposta, embora camuflada pelos dados, era bastante óbvia: os dois momentos citados são períodos pré-eleitorais. Durante as eleições, como acontece esse ano, os ministros-candidatos têm que se decompatibilizar dos cargos para concorrer a novos cargos. Alem disso, a Câmara dos Deputados e Senado têm restrições para aprovação de lei. Ou seja, tudo para e toda a dinâmica que funciona para todos os outros anos, muda nesse ano. E, quando conferi as datas, tudo se encaixou perfeitamente. Portanto, tínhamos uma exceção que confirmava a regra. Além disso, é normal que os deputados mais expressivos, principalmente aqueles nomeados Ministros, agora vão buscar de vôos mais altos, tentando nos seus estados de origem ascender aos governos estaduais, com perspectiva de que os cargos de governador (ou mesmo o de prefeito de algumas cidades) é mais importante que o de deputado. A dança das cadeiras acontece assim no Brasil, muito diferente de muitos outros lugares onde o legislativo é poderoso – ser deputado ou senador é fundamental. Enfim, como disse outro aluno: não é difícil, só é complicado de entender. De fato, o sistema político brasileiro é cheio de meandros, detalhes e peculiaridades, e depois culpam o povo por não saber votar.

PS: 1) este é um ano eleitoral. Seria muito interessante que todos nos inteirássemos de como funciona o sistema de governo no Brasil para não votar estupidamente. PS: 2) Quando o assunto tem possibilidades para ser explorado e os alunos lêem o texto, dá uma boa conversa, até espaço pra postagem no blog cai bem...

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