Interessante como no esforço de guerra os símbolos adquirem forças e as mais inusitadas decisões econômicas se formam. Imagine que as Igrejas deixaram de contar com seus sinos que quando acionados, era uma convocação aos cristãos para seus rituais torna-se canhões e obus para serem usados em guerra. É fato que uma guerra envolve muito mais esforços do que pensamos. El Cristiano e El Criollo – outro obus de mesma origem “sacra” – foram dois dos artefatos responsáveis pela mais contundente derrota da triplice aliança na Batalha de Curupaity em 1866. Mas, ambos caíram nas mãos dos aliados (Argentina, Brasil e Uruguai) em 1868 – o Cristão na Passagem de Humaitá, o Crioulo depois. Hoje é o Arquivo Histórico Nacional quem toma conta dessa memória.

(El Cristiano, no Pátio dos Canhões, já em 1894, aproximadamente)
Mas, no dia 02 de março que El Cristiano foi novamente municiado. Em discurso proferido pelo vice-presidente do Paraguai, Frederico Franco, o artefato foi chamado de “Troféu de Guerra” e exigiu-se sua devolução ao Paraguai. Segundo O Estado de São Paulo, El Cristiano já era tema de discussão entre os ministros da Cultura do Paraguai e Brasil em encontros recentes. E, entre os três milhões necessários para devolver aquele “elefante branco”, Ticio Escobar, Ministro de Cultura do Paraguai, até brincou que preferia a parte que cabe ao seu país em investimentos culturais. Depois veio Lula dizendo: “Manda logo esse negócio antes que dê problema”.
A verdade é que aquele “canhão” não tem a menor serventia mesmo. São praticamente 140 anos de silencio, sem que de sua boca saia nenhum resultado bélico. Hoje em dia então, em tempos de vídeo-guerra, aquilo não serve nem como ponto de referência. Tudo bem que se tivéssemos umas miniaturas do artefato vendidas no MHN, até que eu me interessaria por uma pra colocar como peso de papel. Afora o valor simbólico, porém, nada tem a acrescentar aquela bugiganga para despertar um contencioso diplomático.
Se estou tratando o fato com tanto desdém – talvez não mais que o próprio Tito Escobar ou o presidente Lula – por que então para o vice-presidente Frederico Franco, o “troféu de guerra” tem tanta importância? Não se trata evidentemente de um canhão – ops: obuseiro. O contencioso sobre o preço da energia de Itaipu esta na pauta do dia entre Brasil e Paraguai. El Cristiano, a Guerra do Paraguai, as demarcações da fronteira, a construção de Itaipu e o conseqüente pagamento brasileiro pelo uso da energia extraída da queda-d’agua são temas de interesse bilateral. Por isso aparece um assunto do nada mostrando que pode existir lógica na associação de temas tão distantes historicamente (a Guerra e a Hidrelétrica) uma tentativa de associar o Brasil ao sudesenvolvimento paraguaio.
Ai é que mora o perigo. Uma coisa é o esforço que o país deve fazer em ser solicito com o desenvolvimento dos países vizinhos. Não acho que deva ser de interesse do Brasil oprimir os países vizinhos ou desvincular do seu desenvolvimento a ajuda ao desenvolvimento dos países aliados. Outra coisa bem diferente é tolerar ou ignorar que discursos sejam proferidos de forma virulenta contra o país. Se a Guerra do Paraguai foi um episódio deplorável, ela já tem 140 anos e não pode ser considerada ainda o grande salto paraguaio para o caos. Desde então o próprio Paraguai tem sua parcela de culpa na incapacidade de desenvolver o país. Se o Brasil pode ajudá-lo a tirar o pé da lama, nada melhor que fazer, mas dentro dos limites da diplomacia.
O episódio me pareceu interessante e digno de atenção por mais um motivo: o pragmatismo da figura do presidente da república. ‘Devolver logo aquela coisa’ demonstra um desapego, em certa medida, exagerado pelos eventos históricos. Claro que podemos dizer que é de bom tom reparar os países por esses assaltos culturais. França, Alemanha, Inglaterra entre outros Estados que saquearam os países que se submeteram aos seus domínios têm tomado a atitude recente de devolver artefatos – mas seguem um princípio de reparação histórica. Lula agiu de outra forma, pensando exclusivamente nas negociações com o Paraguai, que se aproximam. É talvez um bom exemplo do modo como funciona hoje a “diplomacia pragmática brasileira”.
Talvez falta-nos discutir um pouco melhor os limites do pragmatismo e como esse pragmatismo deve submeter-se a princípios claros para que os interesses, sejam compartilhados ou isolados, não sejam o único guia da inserção externa brasileira.
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