Aqueles que se atrevem a ignorar o passado são ingênuos ou maldosos. O passado determina o presente. Na psicologia, nosso passado determina nossa personalidade e nosso caráter e as situações mal resolvidas determinam os traumas. Na sociologia o passado determina os costumes, as tradições, as instituições. Aqueles que não conhecem o passado acabam por tendo menores condições de serem senhores do seu futuro. Afinal de contas, conhecer o passado significa ter o domínio da condição presente e entender as origens deste tempo. Com isso é possível conservar ou alterar a trajetória futura. Portanto, o passado é mais que o emaranhado de acontecimentos que não podem ser alterados, é ao mesmo tempo a chave da compreensão das determinações presentes e das possibilidades futuras.
Esta introdução propagandística dos tempos com vistas ao futuro tem uma clara intenção de chamar a atenção do leitor para alguns fatos da nossa vida social cotidiana onde o passado é decisivo nas tomadas de decisão presentes e futuras. O passado de um país faz mais estragos do que podemos supor. E são nos detalhes que o passado se mostra. Talvez mais que os grandes fatos, os detalhes históricos pouco percebidos fazem a diferença.
No domingo 07/03 o Estadão (pag. J5) reproduziu um artigo de Carlos Huneeus argumentando que a demora de 24 horas para a presidenta do Chile Michelle Bachelet acionar as forças armadas para conter os saques na região de Concepción foi decisiva para o inicio da situação de instabilidade. Segundo Hunneeus isso se deu por conta da ainda desconfiança e receio que as forças políticas civis no Chile têm com relação às forças armadas. A longa duração da ditadura de Pinochet fez com que o uso do exercito pudesse dar desmedida capacidade de intervenção àquele estamento que outrora assumiu o governo de forma ilegítima. Além disso, a segurança pública no Chile, embora com muito menos vigor, ainda é de responsabilidade dos carabineros, a mesma corporação militar repressiva dos tempos da ditadura. Desde 1990, porém, cada vez menos são associados aos militares e a população vem restabelecendo a confiança nessa força (em torno de 40% da população diz confiar nas forças armadas enquanto apenas 15% confiam no congresso). Será que a democracia estaria ameaçada com esses números? Se a resposta é positiva e se essa desconfiança passava pela presidência, seria natural hesitar em convocar os militares e aumentar sua força e influência entre a população civil. Entre os analistas não foi possível vacilar, mesmo porque diante da situação de insegurança das principais áreas atingidas era urgente o estabelecimento da ordem social. Tudo isso detona um exemplo de como fantasmas passados se ligam ao presente. Se a sociedade chilena superou o trauma da ditadura de Pinochet, não necessariamente sem feridas que ainda não fecharam 20 anos após de distensão.

No mesmo Estadão de domingo 07/03 (pag. J8) há uma reportagem com trechos da agenda de Rubem Ricupero sobre sua viagem com Tancredo Neves eleito presidente que vão se tornar livro. Segundo parte da historiografia, Tancredo, o primeiro presidente civil brasileiro após 21 anos de governo militar (que nunca chegou a governar), teria a principal preocupação em levar o Brasil a um regime democrático, ou seja, teria o papel fundamental em consolidar a tal da transição democrática brasileira. Parte da historiografia que defende esta hipótese até argumenta que coube a José Sarney, seu substituto, levar a cabo esse projeto. Era um processo que incluía conversas com militares, negociações da transição, política e meio campo entre civis e militares nas implementações de medidas necessárias ao processo.
Somente uma parte da historiografia defende esse lado da história brasileira. Outra facção defende que a democracia já seria transmitida aos civis e o papel do presidente da república, fazendo ar de quem era o verdadeiro bastião da democracia é conversa fiada.
O péssimo dessa discussão historiográfica é que ficamos discutindo sobre documentos de memórias. Não que devamos descartar as anotações da agenda de Rubem Ricupero. Mas, isso não pode nem deve ser o único material historiográfico à nossa disposição. Por isso e por outros motivos mais humanos é tão importante que os militares devolvam os documentos que tentam retirar dos registros oficiais.
Recontar a nossa história é fundamental para que possamos tomar decisões mais acertadas no futuro. E para quem pensa que essa história toda de militares e ditaduras morreu, basta remeter-se ao exemplo de uma semana no Chile, onde o vacilo da presidenta, sustentado pelo receio do passado e por uma estrutura de segurança pública ainda arcaica e não reformada permitiu a onda de violência e insegurança que talvez pudessem ser minimizado mais rapidamente ou não acontecido.
O passado ainda faz história e quando é mal contada ou desvirtuada, também faz presente e futuros desvirtuados. Como brasileiro receio que precisamos cuidar melhor da nossa memória coletiva
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