segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Nos Campos de Piratininga


O que acontece quando um sambista quer falar dos mais de 100 anos do futebol na cidade de São Paulo? São muitos eventos, inúmeros fatos e distintas influências que tornam essa história mais que simplesmente um enredo sobre um esporte em particular... passaremos a falar de uma cultura nacional. Este é pontapé inicial que dá início à peça "Nos Campos de Piratininga", comédia musical em cartaz no TEATRO JOÃO CAETANO, rua Borges Lagoa n° 650 em São Paulo.
A Vila de Piratininga ou o antigo nome da Cidade é o palco da peça escrita por Renata Pallottini e Graça Berman, com direção de Imara Reis. Uma diversão imperdível com belo figurino, momentos hilariantes, atores ótimos e versáteis em um enredo propositadamente pedagógico.
Tudo começa aparentando uma crônica sobre a cidade e seu futebol. Aos poucos vai tornar-se um passeio pela história do Brasil e a constituição de uma nação que respira um esporte nascido da elite ‘griga’ paulistana, mas que misteriosamente conquistou todos os rincões e mais isolado espaço e poluiu os desejos de sucesso de qualquer jovem deste país...
Para falar de tantos elementos o roteiro não pode referir-se apenas ao futebol. Precisamos lembrar de muitas coisas: desde o nascimento dos principais clubes paulistanos e das ligas que abrigaram o esporte até as intrigas políticas que forçaram mudanças sociais profundas. Do esporte amador importado da Inglaterra pelo inglês-brasileiro Charles Muller até o momento de comunhão das diferenças socio-culturais podemos dizer que muita água passa por debaixo da ponte – ou, melhor dizendo: muita bola tem para rolar...
Desde sua origem o futebol conquistou praticantes que iam dos campos de críquete às margens da sociedade. A fundação das ligas, os grandes clubes, a inclusão dos imigrantes, dos migrantes e dos marginalizados. Passamos pela profissionalização dos atletas, pela violência nos campos, pela internacionalização do próprio futebol e pela conquista dos mundiais interclubes.
Nos Campos de Piratininga fala de futebol, de cultura, de música, de política e tudo que se refere à sociedade brasileira.
Não poderia ser diferente. Como falar de são-paulisnos, corinthianos e palmeirenses sem falar da imigração? Italianos, japoneses, espanhóis, portugueses e ingleses que imigraram da Europa para o Brasil e fizeram aqui sua história misturar-se com a história da sociedade brasileira. Como falar de futebol e não falar de preconceito, que aos poucos foi vencido pelo talento de atletas como Leônidas da Silva? O Diamante Negro foi o inventor da bicicleta e conquistou o mundo com suas mais perspicazes peripécias com a bola. Como falar do futebol paulistano sem falar das influências tupi-guarani: de Pacaembu e de Morumbi? Mas, também há o contrabalanço do progresso, o nascimento do rádio, da TV, dos contrastes sociais. Como falar de futebol e não falar de religião, de fé e esperança? Como falar de futebol e não falar dos campos de várzea, do Rio Tamanduateí, das lavadeiras que puderam usufruir daquelas águas como fonte de renda, e das mulheres que vivam às margens do esporte, mas muito presentes em todas as conquistas e lastimas futebolistas? Como falar de futebol e não falar de política? Das conquistas nacionalistas, das paixões pelos clubes e das divergências políticas...

A peça usa uma espécie de formação do povo brasileiro, suas raízes e influências como ponto chave para a formação de uma cultura futebolística complexa e sofisticada, que separa torcedores e ao mesmo tempo os une numa paradoxal espécie de cultura nacional que desabrocha em torno da paixão pelo futebol. Nossas diferenças como torcedores são também o elemento que nos unifica em forma de identidade nacional. Nos reconhecemos como palmeirenses, corintianos, são-paulinos, santistas, lusos; mas sempre somos brasileiros amantes do Futebol. Assim como o samba, o carnaval, a religião e a arte tornam-se distintos elementos culturais, o futebol mais que qualquer outro aspecto da sociedade é uma espécie de esfera unificadora da cultura brasileira. Esta tese tão discutida e algumas vezes questionada nos meios acadêmicos faz da história d’os campos de Piratininga um passeio pela história e construção do que hoje reconhecemos como São Paulo.
Se os clubes, assim como as conquistas sociais, políticas e econômicas nasciam nas rodas de amigos e tornavam-se cada vez mais presente vida cotidiana da cidade de São Paulo. Entre uma conversa na barbearia e uma engraxada no sapato, os papos sobre política e futebol eram reflexo (e às vezes causa) de inúmeras transformações que hoje negligenciamos. A discrepância entre um aristocrata e um escravo, entre o operário e o patrão, entre a mulher e o homem, entre o artista e o intelectual, entre o corintiano e o palmeirense, qualquer motivo de discórdia também pode ser vista como uma possibilidade de progresso.
Qualquer cidade sempre é a fusão do seu próprio contraste. Um contraste que no caso paulistano abrigava as diferenças irreconciliáveis como as de são paulinos e corintianos podia dar-se ao luxo de abrigar como morada de todo um país em marcha para o progresso.
São Paulo, a antiga vila de Piratininga, modesta cidade dos bandeirantes, tornou-se a arena de importantes revoluções sociais e políticas que mobilizaram todo o país. E no século XX foi sinônimo de modernidade. Foi o cenário da Semana de Arte Moderna, comandada por Oswald e Mario de Andrade. Foi cenário da Revolução Constitucionalista de 1932. Abrigou inúmeros comícios em prol de eleições diretas em pleno regime militar. Neste contexto de tamanhas transformações sociais, o futebol mudou com a cidade e a cidade abrigou todas as transformações do seu esporte mais popular e praticado... (É SP que até hoje não tem nenhuma avenida chamada Getúlio Vargas dada a virulência do choque sua burguesia entrou contra o ditador).
Se não podemos entender o futebol sem olhar um cenário mais amplo e complexo transcrito por aspectos políticos, sociais, culturais e econômicos, então assistir a peça é um momento em que um flashback de todas as diferenças e sutilezas do futebol entra em campo para mostrar o quão rebuscado é nossa cultura e o quão necessário foram esforços de inúmeros brasileiros para tornar este o país que temos e o sempre possível o futebol nosso de cada dia...

NOS CAMPOS DE PIRATININGA
Teatro JOÃO CAETANO
Rua Borges Lagoa, 650 – (11) 5549.1744
5ª às 20h30, Sex e Sab. 21hr e Dom. 20h. Até 01 de novembro.
(preço R$ 20,00 - mas, pra que colocar a camiseta de time, R$ 8,00)

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