Em sala de aula surgem cotidianamente as mais esdrúxulas soluções para os mais difíceis problemas. Como exercício intelectual, é importante ser criativo, usar e abusar de idéias inovadoras e propor debates inócuos. Aos poucos, porém, os debates se tornam mais sofisticados e no processo de formação vai se concretizando, existe menos propensão ao insano e mais condições de realismos e intelectualismos. É razoável considerar que existe um mundo diante de nós e que há uma distinção entre o exercício intelectual e as realidades. Assim, todas as propostas e interpretações devem estar atentas e levando em consideração suas possibilidades objetivas e/ou condições materiais.
A história ocidental desdobra-se, como diria George Simmel, hora pelo consenso, hora pelo conflito. Mas nunca segundo o desejo puro das pessoas. Karl Marx dizia que o homem faz a própria história, mas sob condições e estruturas do passado. Max Weber tinha outra expressão para dizer coisa muito próxima: existem “possibilidades objetivas” para que determinados eventos aconteçam. Por exemplo: qual a possibilidade objetiva para Bush iniciar uma guerra contra o Iraque antes do 11 de setembro? Os acontecimentos do WTC tornaram isso possível.
Tudo isso pra defender um certo inconformismo da minha parte com os alunos preguiçosos. O segundo semestre já esta se abrindo e seria pertinente dizer que não existe segredo para a educação. Pode-se calcular (com baixa margem de erro) o aprendizado segundo uma conta bastante simples: a de “horas bunda”. Ou seja, quanto tempo sua bunda passa em cima de uma cadeira pra que você leia e apreenda conteúdos necessários para o uso profissional ou cultural. O resto é preenchido com um pouco de perfumaria e sagacidade.
Mas, evidentemente, existem aquelas pessoas que insistem nos jargões. Preguiçosos de plantão aprendem meia dúzia de palavras chave que cabem em qualquer lugar, com isso dão forma ao discurso vazio e lascam mão de falar. Pasmem: isso ocorre em qualquer nível educacional. Quantas teses eu já não presenciei ou li com termos da moda? Hora é intersubjetividade – ninguém sabe o que significa, mas é bonito usar, até mesmo no título. Agora pode um doutor colocar no título de sua tese um conceito que ele não entende a origem e o processo? Pode... já aconteceu tantas vezes. Durante algum tempo o conceito da moda já foi o culturalismo. Na ciência política ou na economia de esquerda, o mote é fazer a crítica ao neoliberalismo. Os antropólogos adoram uma etnologia, etnografia e a crítica ao etnocentrismo. Tudo isso é bem típico dos doutores que escarram palavras para deixar os pobres mortais estupefatos. Mal sabem as pessoas que algumas horas eles próprios não sabem do que exatamente estão falando.
Certa vez, um de meus alunos – advogado por sinal – defendia-se dizendo que minhas provocações eram problema cultural. Eu falava, se não me engano, da ausência de uma típica cidadania brasileira. E ele dizia, mas isso é um problema cultural, é a cultura brasileira. Claro, num nível exagerado de abstração tudo remete a cultura brasileira. Mas, se, por exemplo, falarmos da reforma agrária? A cultura latifundiária brasileira simplesmente não explica porque a reforma agrária não aconteceu. Onde está então a herança cultural?
Me explico: na década de 1960 era bastante forte a idéia de que havia a necessidade imediata de reforma agrária. Intelectuais, economistas, agências internacionais, todos sabiam que a distribuição fundiária no Brasil era um engodo ao desenvolvimento. E a cultura oligárquica estava na defensiva. Estamos, portanto, em condições objetivas para iniciar um processo de revisão no contexto agrário. Então, por que não houve reforma agrária? Por questões culturais? Não. Porque houve um golpe militar que defendia uma doutrina de “segurança nacional”. Naquele momento tudo que questionasse o status quo do capitalismo era considerado comunista e nada de revisão na propriedade privada – não interessa sob qual o argumento. A maior parte classe média, medrosa e conservadora, acompanhou os golpistas – e fim de papo. O que este evento tem a ver com a “herança cultural brasileira” ou herança oligárquica ou com as sesmarias? Muito pouco. Nossa herança cultural não explica boa parte dos eventos, principalmente nossa herança cultural não explica porque muitas coisas mudaram no país, ou porque houve lutas e processos de reconhecimento da cidadania, por que essa luta chega em um momento parcial... Mas, é claro: num nível de abstração nossa herança cultural é produzida e reproduzida diariamente e faz com que tenhamos traços característicos como nação.
Voltando, portanto, ao argumento do meu aluno advogado: dizer simplesmente que temos uma herança cultural explica quase nada se não vir acompanhado de argumentos fortes para explicar o que é isso ou aonde se quer chegar com essa explicação. Ressaltei a idéia de que meu aluno era um advogado justamente porque esses profissionais são treinados a argumentar e a defender seu ponto de vista como uma luta entre argumentos em que um vence e outro é derrotado. Evidentemente são treinados a, quando não tem argumentos, recorrerem a chavões.
Naquela ocasião, como em algumas outras em menor intensidade, irritei-me com a ausência de “horas bunda” daquele aluno. Você pode concordar ou discordar de um professor em sala de aula, mas não merece ser aprovado se entra e sai igual em um curso. Porque quando alguém discorda do professor, estuda e forma um argumento oposto, ao menos sofistica sua opinião e complexifica seu argumento. Torna-se mais seguro das suas convicções e encontra mais fontes onde se apoiar. É possível saber quando uma pessoa melhora ou piora num curso. E não é por convencê-lo de que você está certo e ele errado, mas pela forma com que desenvolve o seu argumento. Naquela ocasião, senti-me profundamente irritado com o trabalho do aluno porque não foi capaz de sofisticar uma única linha do seu blábláblá... e discurso vazio só convence gente ignorante, o que infelizmente no Brasil, convence muita gente.
Um comentário:
além das horas bunda estudando faz falta um olhar profundo e investigador que busca conhecer as coisas antes de opinar sobre elas.
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