(artigo publicado pelo Jornal Valor "Econômico", edição de 04/08/2009)
Entender as origens, os desdobramentos e as conseqüências da atual crise do sistema financeiro é um trabalho que mal deixou de começar. Para o sucesso de tal empreitada intelectual será necessário o empenho de muitos economistas e outros tantos cientistas sociais ao longo de anos. De qualquer modo, se partirmos do consensual, alguns pontos já podem ser percebidos. E o obvio mais assustador nos diz: nada mais será como antes no que diz respeito à organização do sistema econômico.
Infelizmente os detalhes a respeito das mudanças, à parte todas as frases de efeito que por ai circulam, são ainda muito nebulosos para suposições precisas. Assim, sendo partamos do genérico evidente para reflexões mais refinadas sobre os choques que a economia vem sofrendo desde meados de 2008.
Independente da época e do contexto, duas questões são fundamentais para empreender o capitalismo: trabalho livre e propriedade. Sem assalariados e garantias da propriedade privada, não há capitalismo. Ao olharmos a crise através destas duas ópticas podemos incluir no debate questões importantes até então negligenciadas – porque as distintas formas pelas quais o trabalho e a propriedade se apresentam no decorrer da história é que diferencia um modo de produção de outro e um capitalismo nacional de outro. Se a crise vai mesmo mudar os padrões do capitalismo como muitos prometem, é preciso verificar sua intensidade e impacto.
Na estrutura social encontramos bons indícios para analisar o desdobramento de qualquer mudança de significado social relevante. (Embora devamos ter em mente que a estrutura social é a aparência: conseqüência e não causa de qualquer mudança econômica). As mudanças na organização da propriedade é que são mais marcantes no que diz respeito à organização do sistema... (mas: uma coisa leva a entender a outra).
Rasteiramente, se partirmos da gênese dos estudos sobre a estrutura social do capitalismo, Marx expunha duas classes fundamentais para entendê-lo: a contradição básica entre burguesia e proletariado. Independente de qualquer discussão a respeito da importância atual ou não desta abordagem (independente também das crescentes notícias de que as obras do autor de “O CAPITAL” te se tornado outra vez sucessos editoriais), temos que levar em consideração que a social-democracia européia elevou a qualidade de vida do proletariado através de medidas do estado de bem-estar social. Este fato transformou a mobilidade social numa realidade e acabou dando importância quantitativa e qualitativa às classes médias nos países desenvolvidos. Nos anos oitenta, observaram-se algumas mudanças nas ocupações e na estrutura social, neo-marxistas norte-americanos (como Olin Wright[1]) fizeram estudos sobre a presença de gerentes e supervisores como uma categoria social não-proprietária, mas com poder de decisão sobre o trabalhador, comportando-se como patrões.
Ou seja, desde os primórdios até a atualidade a contradição básica capitalística dividida entre proprietários e não-proprietários dos meios sociais de produção sofreu metamorfoses tornando-se não tão antagônicas entre si, mas categorias relativamente contraditórias internamente.
Tudo isso claramente sofreu o impacto oriundo das formas de acumulação, da geração de crescimento e da renda nacionais. Assim, podemos defender grosso modo que as mudanças na estrutura social vieram a partir de mudanças na estrutura de propriedade. E isso tem mudado bastante ao longo da história do capitalismo. Se observarmos a obra de Berle & Means[2] (ainda em 1932), sobre as corporações, vemos que a estrutura da propriedade não condiz com o poder de decisão dentro da empresa. Ou seja: a grande empresa era um corpo autônomo que funcionava independente de seus donos. Enfim, já faz muito tempos que grandes proprietários não tomam para si a gestão dos negócios, converteram-se em acionistas que não acompanham o dia a dia da empresa.
No andar superior do capitalismo, onde se gestou, desenvolveu e eclodiu a crise, as relações de propriedade e decisão se complexificaram durante o século XX. Muitos gerentes, consultores, supervisores e técnicos assumiram o papel da gestão das empresas, em troca disso ganharam salários exorbitantes, benefícios inacreditáveis e um estilo de vida by celebridade. Formou-se uma casta de managers que tem um padrão de consumo bastante singular: regado a restaurantes, turismo, consumo sofisticado de roupas e eletro-eletrônicos etc... Movimentam um nicho específico de mercado que encontrou nos últimos anos franca expansão com o sistema de cartão de crédito. Na crise estes foram os primeiros “trabalhadores” ou não-proprietários a sentir seus efeitos. A contaminação de diversos setores da economia vem forte e se dissemina porque há uma via transmissão promissora e direta – dos gerentes para os serviços, para a classe média, para os trabalhadores menos qualificados. Se os gerentes perderam empregos ou tiveram seus contratos de trabalho restringidos, o poder do efeito multiplicador desta casta, nada desprezível hoje, complica a economia.
Mas, o mais grave não diz respeito aos ajustes imediatos que a crise tem gerado. A hipótese aqui defendida (e que necessita de tempo e estudos para se desenvolver) é que se a crise for tão forte como o prometido a organização capitalística das grandes corporações financeiras, caracterizada por gerentes que tomam conta da inovação organizacional das empresas, empenhados em otimizar resultados, trabalhar com metas e planejamento estratégico vai encontrar momentos de revisão.
Não é exceção considerar a dureza com que Obama tratou os executivos da GM. Agora, seu plano de ação para a regulação do sistema financeiro implica em monitorar empresas financiadoras e observar a geração lucros através do controle de riscos. Além disso, já existia entre os burocratas do poder público alguns voltados à missão de enquadrar os vários tipos de parasitas do sistema financeiro e as mudanças apontam para a criação de instituições mesmo, reguladoras. A crise pode ter atingido os laços que mantinham unidos gerentes e seus acionistas. Será forte o suficiente para fazer rever estar relação?
A difusão da propriedade em papeis acionários chegou ao nível de complexidade que exige muita desregulação para gerar renda. Esta galinha dos ovos de ouro tem dado sinais de exaustão. Havia um equilíbrio entre as diretorias e conselhos que agora está prestes a ser rompido: ganhavam os acionistas com a valorização dos papeis, ganhavam os gerentes comendo uma fatia dos lucros através de seus bônus e benefícios. Ambos ganhavam, não havia conflitos. Mas, se se constatar que havia uma bolha em algum momento desses ganhos, os efeitos podem ser adversos. Então: se o sistema financeiro mudar, muda também esta relação – caso haja restrições na liberdade financeira, pode haver impacto também na relação de gestão dos negócios. E então surgirá uma dúvida crucial: como vai ficar as possibilidades de equilíbrio entre gerentes e acionistas?
O capitalismo de hoje é um sistema orientado pelos gerentes – que se transformam, no auge da carreira, em consultores, e esses convencem (e/ou convertem-se), os burocratas do sistema de regulação pública a desregular. Esse elemento em perspectiva histórica é fundamental para entender a crise e seu desdobramento. Foram as decisões dessas figuras-chave do sistema que elaboraram a mística desordem que levou à crise.
Muitas dúvidas ainda resultam em saber como ficará esta estrutura. Mas, a sociedade anônima capitalista encontrou um grande dilema a superar: como lidar com os executivos escolhidos para administrar o patrimônio dos investidores? Mais: como fazer isso sem valorizar de modo exorbitante e irregular as ações das empresas?
Não vamos com isso demonizar pessoas ou papeis. Porque, enquanto todos ganhavam com a desordem, ela era boa e desejável. Mas agora que a busca desenfreado por bonança deve dar lugar ao bom senso, não faz sentido apontar bodes. Enquanto os governos se preocupam com o contágio e ainda não reforçaram as medidas para evitar outras novas crises, os efeitos das mudanças não nos são percebidos. Entretanto, quando as novas ordens fizerem-se fatos, é preciso estar atento porque a estrutura social pode mais uma vez nos revelar se há e qual o grau de mudança no sistema capitalista. Resta aguardar as respostas que o só tempo pode nos dar: a crise foi forte o suficiente para gerar impacto na estrutura social e no equilíbrio de gestão da propriedade capitalista?
[1] Olin Wright, Erick. “Class and Occupation”. Theory and Socity. Vol. 9, n.1, 1980.
[2] Berle & Means. A moderna corporação e a propriedade privada. Varias edições em português, publicada originalmente em inglês, 1932.
[2] Berle & Means. A moderna corporação e a propriedade privada. Varias edições em português, publicada originalmente em inglês, 1932.
Nenhum comentário:
Postar um comentário