Nunca conseguia pronunciar direito o nome da namorada do Guto. Tapeando um pouco minha ignorância, a chamava de Ari. O diminutivo, pelo menos me parecia claro – o nome completo eu não conseguia soletrar. Como Ari resolvia o caso, minha preguiça casada a uma certa vergonha me desestimulava a certificar o substantivo próprio da citada Ari.
Mas, isso não esta, ainda, diretamente relacionado ao assunto principal, a história da minha primeira ópera começa antes dela própria, no furo que a antecedeu.
Lá por meados de junho, comprei entradas para assistir Madame Butterfly. A história da gueixa e do soldado seria minha primeira ópera, não fosse o efeito em cascata. Minha semana estava completa. Na segunda, na reunião com os gestores de Guarulhos que faziam um trabalho sobre acessibilidade, na terça apresentação de um trabalho na universidade, na quarta, uma paz de espírito com a minha tão esperada primeira ópera, na quinta eu tinha que prestar meus serviços docentes e na sexta eu viajava pra Campinas por algum compromisso tosco que já não me lembro. Tudo isso ocorreria sempre depois do horário comercial e de trabalho, ou seja, depois das 18hrs – jornada dupla. Mas, a desorganização não governamental me fez atrasar e me obrigou a, já na segunda-feira, começar a semana com tudo desordenado. Resultado: na segunda-feira tive que cancelar com os gestores. Mas, os trabalhos necessitavam de atenção e comentários porque na semana seguinte já seriam apresentados e avaliados. Ou seja, cancelar na segunda significava reagendar para aquela mesma semana e com o atraso shakespeareano que a ONG me presenteou de última hora, tive que rever todos os horários. Moral da história: entre compromissos docentes, arranjos institucionais e fim de semana, tive que abrir mão da Madame Butterfly. Tudo bem, nem gosto muito de gueixa, borboletas ou soldados – mesmo desconfiando que Puccini seja brilhante; o que não é novidade, mas só pra dizer que ainda não o conheço na ópera, vale o clichê.
Mais uma vez, a insistência vale (e valeu) a pena. Sem persistir pouco não se alcançaria o que pretendo – para ir além do básico, ou se tem muita sorte, ou tentemos mais de uma vez. Mas, deixemos as lições de auto-ajuda aos sábios; voltando à vaca fria: acabei voltando ao Municipal na primeira oportunidade e comprei entradas para a nova ópera – desta vez: “Ariadne, em Naxos” – Richard Strauss. Assim, troquei um italiano por um alemão, na ópera talvez não seja um bom negócio, mas diante das adversidades, foi o que me restou. Para agosto, algum tempo depois, consegui me programar para uma ópera no Municipal.
Tudo bem; admito: às vezes demora um pouco pra cair a ficha. Estava eu, olhando o bilhete do evento, pensando, curioso e calculando quantos dias faltavam e aí lembrei: Ari, aquele nome que eu não guardava, era Ari de Ariadne. Uhmm, a namorada do Guto tinha o mesmo nome da ópera...
Minhas conclusões foram divididas com meu colega no café. Depois de questioná-lo sobre a origem do nome, se tinha alguma relação com a ópera de Strauss, ele me esclareceu que Ariadne vinha da fascinação do pai da namorada pela mitologia grega. Ariadne é a personagem que salva Teseu do minotauro dando a ele o novelo de lã. A história de Teseu e o minotauro eu conhecia – só não sabia que tinha sido ela que dava ao herói a lã que o tira do labirinto. Guto também me disse que essa lenda foi usada por Freud para dizer que todo homem precisa de uma Ariadne em sua vida. Só depois me contou que Teseu a deixa e que a história dos dois não tem um final feliz. Depois do labirinto, cada um foi pra o seu lado, segundo o fim da nossa conversa.
Confesso uma certa ignorância no quesito mitologia grega e também acho um tanto cansativo aquelas histórias de lendas e sonhos da psicanálise – sempre fico com a impressão que Freud explica, mas não resolve – acho que é o viés funcionalista que me domina; talvez preciso de um divã pra pensar melhor sobre isso!
A minha conversa com Guto acabou por ali. Fiquei satisfeito em ir para ópera menos desinformado. Claro que eu poderia, na comodidade total, acessado a internet e ter entrado em uma Wikipédia qualquer para ver minimamente alguma besteira escrita sobre o assunto. Mas, prefiro evitar esses recursos, não considero essas ferramentas muito confiáveis; e, depois, achei que estando desinformado a respeito da ópera, da qual nunca ouvi falar, pudesse ser interessante para me surpreender. Como as informações vieram de modo casual, sai daquele papo satisfeito. Por dois motivos inclusive: por ter encontrado informações preciosas sobre a ópera e, por fim, aprender o nome da namorada do Guto, que agora eu não esqueço mais: Ariadne.
Mas, como nem tudo são flores, em contrapeso: sai com duas pulgas atrás da orelha. Primeiro, tinha aprendido apenas uma parte do título da obra: “Ariadne, em Naxos”. Aquilo que para mim era um título perfeitamente estranho, agora era apenas 50% desconhecido: eu não fazia idéia do que era Naxos. E aquele raio daquela virgula, fazia o que ali? Enfim, mantive a minha proposta inicial de deixar que pelo menos em parte, a apresentação me surpreendesse – ainda que em alemão. A segunda pulga, era essa história do Freud: todo mundo precisa encontrar sua Ariadne. Será? Que história é essa de juntar e depois separar. Me parecia uma história de muito casuísmo pra ser romântica. Enfim... tava cabreiro!
Okey, até que consegui, comprando com antecedência e arriscando novos contratempos das desorganizações governamentais e não governamentais, um bom lugar para o espetáculo. Desta vez o cálculo de risco me poupou da surpresa. E lá estava eu, em dia e hora marcados, para minha primeira experiência e contato com a produção musical que eu desconhecia. Até tive tempo para um cafezinho com broma. Não que eu quisesse a broma, mas a diferença entre o café sem broma para a o com era de R$ 0,60. Promoção é promoção. Na galeria entre o metro Anhangabaú e o Theatro Municipal, o simpático café me fez sentir no McDonald´s.
Então, vamos lá, procurar o Foyer: terceiro andar; até que boa visão. Me senti a burguesia em ascensão; hehe!: não tão distante dos nobres na platéia, nem tão plebe rude que nas fileiras superiores enxerga o espetáculo pela metade.
Não sou tão virgem assim no quesito espetáculo de música clássica. Pela minha experiência com a orquestra sinfônica, eu esperava que todos os meus momentos por assistir DVDs de óperas ou os programas da Cultura, deviam ser descartados. É como assistir futebol: na TV é uma coisa, no estádio é outra – no caso da ópera, a agravante é que não faz sentido o replay; a única vantagem da TV, no futebol.
Tudo pronto, a peça começa com a apresentação do Maestro, depois um monólogo. Ptz, em alemão! O que deu na cabeça do Mozart quando achou que poderia cantar uma ópera em alemão com a mesma maestria que os italianos? Tudo bem que funcionou, mas pelo menos o italiano eu entenderia alguma coisa. No alemão, mesmo com ano e meio de estudo, não entendia absolutamente nada. O detalhe é que faz mais de cinco anos que não toco nas apostilas, mas mesmo assim: eita idiomazinho marrento.
Pra me salvar, só os milagres da tecnologia. Tinha legenda! Isso mesmo senhoras e senhores que nunca estiveram em uma ópera, o mundo moderno proporciona, às vezes, bons frutos. Ao chegar percebi que tinham dois projetores, só depois reparando melhor, percebi que um era para a legenda, que ficava em um retângulo acima da encenação e outro usado como complemento à cenografia. Portanto, o alemão era traduzido. Mas, não dá pra ficar (como ficamos nos filmes de Hollywood), com uma leitura atenta na legenda e prestando atenção no filme. Deixei a legenda passar, e dei mais atenção à música e aos gestos dos cantores, só quando do dialogo era mais longo dava uma pescada na legenda pra saber o que estava acontecendo – e confesso que não tive grandes prejuízos ao preterir a legenda.
A ópera (finalmente), em dois atos, começava com os atores e produtores discutindo a compra do espetáculo por um mecenas – o homem mais rico de Viena – que encomendou ao poeta e ao maestro a encenação de um ato da tragédia de Ariadne aos seus convidados para o jantar. Além disso, haveria uma dança de Zerbinetta e seus quatro bailarinos, que deixaria de ser prólogo, por encomenda do mecenas, para se tornar epílogo. Inconformado, o poeta protestava. A tragédia daria lugar a comédia, e a reflexão da sua obra daria espaço ao riso descompromissado da burguesia vienense.
No desenrolar dos fatos, faltando cinco minutos para iniciar o espetáculo, o nobre burguês muda mais uma vez de idéia e usando do argumento “estou pagando!”, exige que nem prólogo nem epílogo, Zerbinetta vai se apresentar com seus bailarinos, durante a ópera.
E é a própria Zerbinetta quem se encarrega, na encenação, de convencer o Poeta de que isso é possível sem empobrecer seu trabalho.
E que maravilha foi aquele diálogo musical: o poeta colocava na história de Ariadne sua solidão e não via na libertina Zerbinetta espaço para a reflexão digna do sofrimento humano. A bailarina mostrou ao poeta seu coração solitário sem máscaras. Diversão, noite, dança, libertinagem e formicação não significam desprendimentos sempre; em alguns casos podem ser apenas fuga ou medo da própria solidão que consome o ser. Zerbinetta despiu ao poeta sua solidão, sem as mascaras da dança, da noite, da vadiagem, ela era só mais uma solitária a vagar pela cidade. O poeta e a bailarina conectavam seus sentimentos via atitudes antagônicas.
E, aprendi mais sobre a lenda de Ariadne, que foi deixada por Teseu na ilha de Naxos. Creta era onde a princesa morava e onde Teseu partiu para enfrentar o minotauro. Matar o monstrengo faria do herói ajudar seu povo, acabando com o sacrifício e os impostos à ilha de Creta. Feito o serviço, ao voltar a sua terra natal, Teseu faz um pit-stop em Naxos e lá “esquece” Ariadne. A princesa chora seu amor e é coberta pelo princípio da fidelidade, se afoga inconsoladamente na solidão.
Puta história triste meu! Agora eu entendia o título por inteiro. Ainda bem que não soube de tudo isso antes de ir à ópera. Pôxa, além de saber que Ariadne e Teseu não teriam um final juntos, ainda vejo que o cara larga a mina pra morrer sozinha em uma ilha. E ela, aceitando seu destino, a doida aguarda a morte e se entrega à solidão. Santa ingenuidade de quem só lia a história da bela adormecida, da branca de neve e da gata borralheira na adolescência. Não me lembro de nenhum caso em que a coleção vaga-lume tinha algo tão triste.
Fecham-se as cortinas: intervalo. Esse foi o primeiro ato da história. Combinaram, o poeta e Zerbinetta, que a dançarina tentaria usar seu talento para animar a princesa. E, entre uma e outra lamentação das ninfas e entre a espera da morte por parte de Ariadne, os bailarinos e Zerbinetta tentariam animar e espantar a solidão da princesa. Essa era saída para o apuro que o burguês colocou o pessoal da ópera. Assim encerrou o primeiro ato.
O segundo ato mostra o sofrimento da jovem Ariadne, desolada na ilha de Naxos. Ópera pura: sofrimento, sentimento, música, expressão lírica. Em alemão! Uhg!
De tudo, o mais interessante do causo todo é que Ariadne era uma senhora de princípios. Ela não era mais ou menos fiel ao amor de Teseu, nem pelo simples detalhe de ter a abandonado na Ilha para morrer. Os princípios de Ariadne superavam até mesmo o amor. Seus atos eram fieis a sua noção de fidelidade. Seria fiel aos seus sentimentos, mas também a idéia de que teria um único amor.
Claro que entre um drama e outro mais contundente, uma ou outra piadinha deixei escapar. Ainda bem que a moça ao lado era simpática e compreensiva...
Mas, ainda bem que esses gregos são uns caras espertos e diz a lenda que a solidão foi traiçoeira com Ariadne. Nexos também era a ilha preferida de Dionísio, Baco, que ao chegar foi confundido pela princesa com a morte e depois com o próprio Teseu. Até Ariadne descobrir que Dionísio era Dionísio e não a morte ou Teseu, já era tarde e ela estava toda envolvida. Dionísio que estava na fossa também por conta de rejeição de alguma ninfa e não teve dúvidas – na verdade teve, pelo visto um monte de dúvidas – mas no final da uns apertos na tal Ariadne. (não me pergunta qual nem de onde vem o sofrimento de Baco... detalhes de mitologia grega cruzada não são comigo, esse deve ser outra lenda que alguém explora).
Um semideus e uma mortal, enfim, juntos. O engraçado é que pra mim, Baco, sempre parecia uma figurinha com uma flauta e de orelha pontuda. Na ópera não tem nada disso, posso até estar confundindo os bichos, porque o cara que eu vi era maior galãzão, parecia um príncipe – com direito a roupa branca brilhante e capa.
Esta segunda parte é nitidamente mais lírica. Fiquei com uma impressão estranha de descontinuidade. Mas, quem era eu pra questionar a perspicácia de Strauss? Não fosse o caderninho sobre a opera que comprei nas dependências do Theatro no intervalo (alias, custou-me R$ 4,00 – se eu soubesse de antemão que era caro assim, não teria comprado – marinheiro de primeira viagem), não saberia eu que originalmente a ópera foi feita para ser um primeiro ato de teatro e um segundo ato como ópera – Strauss e o poeta Hofmannsthal se juntaram (1903/4) para realizar o experimento. Só depois, com o fracasso das primeiras apresentações, a peça foi totalmente convertida em ópera quando primeiro ato foi musicado por Strauss – isso já lá por 1916; pois é, faz tempo. Segundo o que consta no caderninho caro, o povo do teatro não gostava da adaptação do segundo ato e o povo da ópera não curtia o primeiro ato. Enfim, particularmente, se a primeira parte fosse apenas interpretação sem música, eu ficaria mais curioso. Mas, ai poderia ser em português. Tudo bem que ópera e música não devem mesmo ser traduzidas, mas um ato teatral dentro de uma ópera, valeria a pena.
Enfim, minha primeira ópera me levou a várias reflexões que não vou atormentar o leitor com elas. Mas, talvez algumas observações valem a chateação da leitura até aqui suportada: depois de longos trinta anos, só conhecendo a televisão e o cinema – com momentos de teatro totalmente episódicos, assistir a uma ópera com certa expectativa não me trouxe o deslumbre esperado. Muito interessante, com uma produção cheia de surpresas: palco pra lá, baixa pra cá, muda daqui, sobre dali, desce, musica de primeira, projeção, luzes etc. Mas, tem produções cinematográficas que conseguem sensações muito parecidas em uma linguagem mais contemporânea. Como lazer, como passatempo, distração e relaxamento, a ópera é datada. Ficou evidente que é uma produção de outro tempo. Mas, justamente por isso é mágica. Traz para o palco outros valores, outra cultura, antigos sentimentos, que se não fazem mais sentido serem praticados, mas também não devem ser esquecidos.
Quando, no moderno mundo contemporâneo, que viveu a revolução feminina, a emancipação da mulher em que muito se lutou e se luta para que essa reivindicação se tornasse prática, quando depois de tanta luta, podemos não ironizar a história de uma mulher que lamenta o abandono de uma mulher que se entrega a solidão depois de abandonada pelo seu herói. Soa, contemporaneamente, um roteiro ridículo.
Mas, aquela ópera preserva valores de outros tempos, no faz pensar, no presente, no passado e nas perspectivas de futuro. Cumpre seu papel, não mais de construção do nosso tempo, mas patrimônio que preserva a história do pensamento ocidental.
Por mil e um motivos ou simplesmente porque é um bom passatempo e um programa diferente, Ariadne, em Naxos foi minha primeira ópera, mas com certeza não será a última... mesmo porque alguns dos próximos bilhetes já foram comprados.
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