terça-feira, 18 de novembro de 2008

Linha de Passe: estrutura e estratificação social



Assisti linha de passe com uma amiga e gostei: recomendo. Mas, fiquei com aquela sensação de que já tive melhores. Foi esta sensação que me alimentou a escrever esta resenha. E, se desenvolvo aqui um raciocínio crítico, não se trata de repúdio, mas de acréscimo a uma boa iniciativa... Todavia, antes de fazer o veneno das palavras escorrerem pelas minhas mãos, seria minha leitura injusta se eu não me lembrasse de momentos em que um sorriso manhoso escapou a minha boca em determinadas tomadas.


Direto ao assunto, digamos que o filme segundo entendo seria espetacular se não fossem alguns detalhes estruturais que comprometem a obra. Os primeiros destes detalhes são os desequilíbrios latentes do roteiro. “Desequilíbrios latentes”: que raios eu quis dizer com isso? Nada muito sofisticado, apenas queria causar impacto ao leitor com um termo pseudo-sofisticado para chamar a atenção que existem algumas falhas de lógica e alguns desencontros entre realidade e ficção no roteiro.

Apenas essas sutilezas, que reconheço como descontinuidades fazem da minha leitura do filme algo incômodo. Por exemplo, o impasse entre realismo e realismo fantástico presente no roteiro. Se a história se propõe a ser fiel a realidade, algumas tiradas fantásticas seriam desnecessárias, mas se a idéia era construir algo by Gabo, faltou imaginação. Nada contra um mundo Macondo (pelo contrário), mas que isso seja explorado no seu brilhantismo. Se não sou brilhante o suficiente para ser fantástico, reconheço a minha modéstia e me apego ao real sensível palpável e palatável. Se a idéia era experimentar um realismo fantástico ainda embrionário, tudo bem: dias melhores virão ou filmes melhores virão; mas se se propôs a um mix de mundo da fantasia e realidade, o experimento ficou desequilibrado.


O segundo detalhe estrutural, também vem do roteiro. Chamo-o aqui de “deslocamento da visão de mundo”. Porque diferentemente do outro detalhe estrutural, este não é descontínuo porque faz parte da visão de mundo da equipe de trabalho, ou seja, uma visão de mundo de um grupo social, deslocada a outro. Explico todo esse diz-que-me-disse: faz parte da visão da maior parte dos brasileiros de boa renda e posição social que pobreza é um castigo. Alias, até os pobres em geral, ou uma maioria deles, se acha castigados pela sua condição sócio-econômica. Talvez seja um legado judaico-cristão. Talvez seja algo maior que isso. Mas, seja a explicação que for, foge aos propósitos dessa resenha.


O fato é que em “Linha de passe” o pobre é mostrado na condição da sua pobreza (e isso é um mérito da obra), mas que vivem na condição de classes médias (esse é o deslocamento da visão de mundo). A vida de classe média faz as pessoas trabalharem muito, terem poucos amigos, se esconderem dos vizinhos (a tal da privacidade), optarem por relações privadas e descartarem as relações comunitárias, valorizarem acima do bom senso o dinheiro etc... Este é o modo de vida das classes médias, mas com certeza não é o dos pobres. Por exemplo, Reginaldo jamais, ainda que quisesse, jogar futebol sozinho no quintal de casa. Esperto como é, faria sucesso na escola e teria muitos amigos o convidando para o futebol. Não há justificativa para ele e seus amigos não estarem todos papeando na sarjeta ou jogando futebol na rua. Não há condomínio ou distância geográfica que impeça os garotos de se agruparem após as aulas.

E jogar futebol não impediria Dario de trabalhar, assim como não impedia Dinho de ir ao culto ou Denis de namorar. O trabalho não impede ninguém de se relacionar em comunidade. Talvez menos tempo aqui ou ali, mas nos finais de semana a vizinhança se junta para um churrasco na laje, para uma festa, para papear, fofocar ou beber. As relações sociais da comunidade e seu potencial aglutinador estão muito pouco explorados na obra. É muito mais fulgente a vida numa comunidade pobre.


Pode ser que a tentativa de afastar as tristezas e carências sociais ou a solidão que essas deficiências causam, seja um dos principais motivos que une essas pessoas. Pode ser também que a solidariedade e o sentimento de reciprocidade seja um instinto de sobrevivência nas comunidades pobres. Mas, independentemente do motivo que os une, as relações comunitárias são mais fortes e mais orgânicas que as relações nas classes médias, onde aparentemente o espírito de concorrência é maior que o espírito de solidariedade.




Ser pobre não é sinônimo de ser infeliz. Nem muito menos de carregar sobre as costas todo o peso da desgraça do mundo. Evidentemente, causa sempre no brasileiro um inconformismo com relação à sua condição social: sou pobre só porque nasci aqui na favela? Quer dizer que se eu tivesse nascido nos jardins, assim como sou, teria outra condição de vida?


O inconformismo, a inquietude e a violência entre os pobres para com os ricos não podem ser resumidas ao fracasso, mas a explicação desta relação deve expandir-se ao entendimento da nossa estrutura social que barra estratificações. São raros os trabalhos que tiram um brasileiro da favela e os leva à glória reconhecida pela alta sociedade e ao dinheiro e à fama que disso resulta. O futebol é um deles. A arte é outra. Mas, não o trabalho árduo e cotidiano.

Não acho que todos os brasileiros sonham em ser ricos, fazer sucesso ou ser o homem ou a mulher do ano. Alguns com certeza sonham com isso, outros entre custos e benefícios, preferem o anonimato. Variações mil entre os dois extremos. Mas, acho que todos queremos e principalmente merecemos vida digna. E, o grande problema nacional é quando um trabalhador médio no Brasil (que se esforça e concede boa parte de seu tempo e sua dedicação a um trabalho), não consegue encontrar condições dignas de existência, seja no seu caminho para casa, no seu bairro, na sua própria casa. Assim, a revolta que vejo em “linha de passe” não é a revolta pela pobreza, mas a revolta por se esculhambado dia-a-dia pelo desrespeito ao pobre. Mas, não acho que foi essa a intenção do roteiro, que foi tendencioso ao mostra muito mais como é triste ser pobre do que vida de um pobre.


Isso, argumento que na visão de mundo das classes médias, tornar-se pobre é um castigo, uma penalidade ou uma maldição. Esse preconceito leva ao não entendimento da condição social de pobreza. Evidente que ser pobre traz inúmeros problemas, principalmente porque os serviços públicos não funcionam adequadamente, como saúde, transporte público, educação, cultura... Mas, não é verdade que pobreza é sinônimo de infelicidade ou desgraça. Talvez as privações que a falta de dinheiro nos leve seja um problema que causa muitas contrariedades. Entretanto, de forma alguma isso está diretamente relacionado ao sofrimento ou à infelicidade. Há muitos exemplos nas relações sociais das favelas em que a própria comunidade se ajuda para suprir faltas ou problemas graves. Talvez mostrar a alegria coletiva que causa a solidariedade, seja uma das deficiências da visão de mundo exposta no filme.

Desenvolvida a idéia do “deslocamento da visão de mundo”, ou seja, pensar o que é ser pobre com a cabeça do ser rico, confesso que fui assistir ao filme com grande receio. É comum o clichê de idealizar a pobreza no Brasil. Seja para o bem ou para o mal. Criar grandes heróis ou vilões. Linha de passe ao menos foge destes clichês. Consegue ir além, invadir o cotidiano com cenas hilárias e tristes. Talvez peque por alimentar o pavor que a classe média tem de um dia tornar-se pobre. Mas, talvez tenha o mérito de mostrar que a empregada doméstica, o motoboy, o menino no ônibus, o jogador de futebol ou o evangélico, todos tem uma vida de alegrias e tristezas para além do que fazem – famílias bem ou mal constituídas que se sustentam.Enfim, seria muito indecoroso não reconhecer que os atores são um espetáculo à parte. Justo o Cannes 2008 à Sandra Corveloni e a singela homenagem de Walter Salles à Vinicius de Oliveira. Kaique Jesus Santos, no porte de Reginaldo parece um ator experiente. As tomadas, o cenário, os cortes, não é preciso comentar já que Walter Salles e Daniela Thomas fizeram o esperado, deram show. Além disso, nos seus acertos e erros, Linha de Passe é um excelente pretexto para discutir este complexo, contraditório, imenso, desconexo, intangível, diverso, multicultural, vulnerabilidade social, dialético, estapafúrdio, multiético, estrógeno (Bom! estas palavras tinham que estar em algum lugar), e malandro universo que é o Brasil.

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