
Assisti linha de passe com uma amiga e gostei: recomendo. Mas, fiquei com aquela sensação de que já tive melhores. Foi esta sensação que me alimentou a escrever esta resenha. E, se desenvolvo aqui um raciocínio crítico, não se trata de repúdio, mas de acréscimo a uma boa iniciativa... Todavia, antes de fazer o veneno das palavras escorrerem pelas minhas mãos, seria minha leitura injusta se eu não me lembrasse de momentos em que um sorriso manhoso escapou a minha boca em determinadas tomadas.
Direto ao assunto, digamos que o filme segundo entendo seria espetacular se não fossem alguns detalhes estruturais que comprometem a obra. Os primeiros destes detalhes são os desequilíbrios latentes do roteiro. “Desequilíbrios latentes”: que raios eu quis dizer com isso? Nada muito sofisticado, apenas queria causar impacto ao leitor com um termo pseudo-sofisticado para chamar a atenção que existem algumas falhas de lógica e alguns desencontros entre realidade e ficção no roteiro.
Apenas essas sutilezas, que reconheço como descontinuidades fazem da minha leitura do filme algo incômodo. Por exemplo, o impasse entre realismo e realismo fantástico presente no roteiro. Se a história se propõe a ser fiel a realidade, algumas tiradas fantásticas seriam desnecessárias, mas se a idéia era construir algo by Gabo, faltou imaginação. Nada contra um mundo Macondo (pelo contrário), mas que isso seja explorado no seu brilhantismo. Se não sou brilhante o suficiente para ser fantástico, reconheço a minha modéstia e me apego ao real sensível palpável e palatável. Se a idéia era experimentar um realismo fantástico ainda embrionário, tudo bem: dias melhores virão ou filmes melhores virão; mas se se propôs a um mix de mundo da fantasia e realidade, o experimento ficou desequilibrado.
O segundo detalhe estrutural, também vem do roteiro. Chamo-o aqui de “deslocamento da visão de mundo”. Porque diferentemente do outro detalhe estrutural, este não é descontínuo porque faz parte da visão de mundo da equipe de trabalho, ou seja, uma visão de mundo de um grupo social, deslocada a outro. Explico todo esse diz-que-me-disse: faz parte da visão da maior parte dos brasileiros de boa renda e posição social que pobreza é um castigo. Alias, até os pobres em geral, ou uma maioria deles, se acha castigados pela sua condição sócio-econômica. Talvez seja um legado judaico-cristão. Talvez seja algo maior que isso. Mas, seja a explicação que for, foge aos propósitos dessa resenha.
O fato é que em “Linha de passe” o pobre é mostrado na condição da sua pobreza (e isso é um mérito da obra), mas que vivem na condição de classes médias (esse é o deslocamento da visão de mundo). A vida de classe média faz as pessoas trabalharem muito, terem poucos amigos, se esconderem dos vizinhos (a tal da privacidade), optarem por relações privadas e descartarem as relações comunitárias, valorizarem acima do bom senso o dinheiro etc... Este é o modo de vida das classes médias, mas com certeza não é o dos pobres. Por exemplo, Reginaldo jamais, ainda que quisesse, jogar futebol sozinho no quintal de casa. Esperto como é, faria sucesso na escola e teria muitos amigos o convidando para o futebol. Não há justificativa para ele e seus amigos não estarem todos papeando na sarjeta ou jogando futebol na rua. Não há condomínio ou distância geográfica que impeça os garotos de se agruparem após as aulas.
E jogar futebol não impediria Dario de trabalhar, assim como não impedia Dinho de ir ao culto ou Denis de namorar. O trabalho não impede ninguém de se relacionar em comunidade. Talvez menos tempo aqui ou ali, mas nos finais de semana a vizinhança se junta para um churrasco na laje, para uma festa, para papear, fofocar ou beber. As relações sociais da comunidade e seu potencial aglutinador estão muito pouco explorados na obra. É muito mais fulgente a vida numa comunidade pobre.
Pode ser que a tentativa de afastar as tristezas e carências sociais ou a solidão que essas deficiências causam, seja um dos principais motivos que une essas pessoas. Pode ser também que a solidariedade e o sentimento de reciprocidade seja um instinto de sobrevivência nas comunidades pobres. Mas, independentemente do motivo que os une, as relações comunitárias são mais fortes e mais orgânicas que as relações nas classes médias, onde aparentemente o espírito de concorrência é maior que o espírito de solidariedade.
Ser pobre não é sinônimo de ser infeliz. Nem muito menos de carregar sobre as costas todo o peso da desgraça do mundo. Evidentemente, causa sempre no brasileiro um inconformismo com relação à sua condição social: sou pobre só porque nasci aqui na favela? Quer dizer que se eu tivesse nascido nos jardins, assim como sou, teria outra condição de vida?
O inconformismo, a inquietude e a violência entre os pobres para com os ricos não podem ser resumidas ao fracasso, mas a explicação desta relação deve expandir-se ao entendimento da nossa estrutura social que barra estratificações. São raros os trabalhos que tiram um brasileiro da favela e os leva à glória reconhecida pela alta sociedade e ao dinheiro e à fama que disso resulta. O futebol é um deles. A arte é outra. Mas, não o trabalho árduo e cotidiano.
Não acho que todos os brasileiros sonham em ser ricos, fazer sucesso ou ser o homem ou a mulher do ano. Alguns com certeza sonham com isso, outros entre custos e benefícios, preferem o anonimato. Variações mil entre os dois extremos. Mas, acho que todos queremos e principalmente merecemos vida digna. E, o grande problema nacional é quando um trabalhador médio no Brasil (que se esforça e concede boa parte de seu tempo e sua dedicação a um trabalho), não consegue encontrar condições dignas de existência, seja no seu caminho para casa, no seu bairro, na sua própria casa. Assim, a revolta que vejo em “linha de passe” não é a revolta pela pobreza, mas a revolta por se esculhambado dia-a-dia pelo desrespeito ao pobre. Mas, não acho que foi essa a intenção do roteiro, que foi tendencioso ao mostra muito mais como é triste ser pobre do que vida de um pobre.
Desenvolvida a idéia do “deslocamento da visão de mundo”, ou seja, pensar o que é ser pobre com a cabeça do ser rico, confesso que fui assistir ao filme com grande receio. É comum o clichê de idealizar a pobreza no Brasil. Seja para o bem ou para o mal. Criar grandes heróis ou vilões. Linha de passe ao menos foge destes clichês. Consegue ir além, invadir o cotidiano com cenas hilárias e tristes. Talvez peque por alimentar o pavor que a classe média tem de um dia tornar-se pobre. Mas, talvez tenha o mérito de mostrar que a empregada doméstica, o motoboy, o menino no ônibus, o jogador de futebol ou o evangélico, todos tem uma vida de alegrias e tristezas para além do que fazem – famílias bem ou mal constituídas que se sustentam.Enfim, seria muito indecoroso não reconhecer que os atores são um espetáculo à parte. Justo o Cannes 2008 à Sandra Corveloni e a singela homenagem de Walter Salles à Vinicius de Oliveira. Kaique Jesus Santos, no porte de Reginaldo parece um ator experiente. As tomadas, o cenário, os cortes, não é preciso comentar já que Walter Salles e Daniela Thomas fizeram o esperado, deram show. Além disso, nos seus acertos e erros, Linha de Passe é um excelente pretexto para discutir este complexo, contraditório, imenso, desconexo, intangível, diverso, multicultural, vulnerabilidade social, dialético, estapafúrdio, multiético, estrógeno (Bom! estas palavras tinham que estar em algum lugar), e malandro universo que é o Brasil.
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