quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Sobre sectarismo e carros

Acabei de passar por mais um pedágio e deixar uma quantia considerável de reais para os cofres públicos. (Nada contra pagar impostos, mas que eles fossem justos ou no mínimo progressivos. No Brasil são regressivos e em cascata #NinguémMerece). Enfim, mas o assunto é a janela do meu carro e não o sistema tributário brasileiro. Logo que passei o pedágio, apertei levemente um botão ao lado do meu assento e magicamente o vidro da janela foi se fechando. Meu carrinho ainda conta com um vidro fumê que ofusca levemente o brilho do sol e torna agradável o ambiente. Coisas da tecnologia: acionar um comando e ser prontamente atendido, certa onipotência gentil, no caso muito melhor que a manivela. Meu primeiro carro foi um Voyage 82. Era lindo (quer dizer, eu achava), mas não contava com os apetrechos modernos. E nem vou dizer que meu atual carro é assim um carrão. É só um carro popular, 1.0, mas que conta com algumas comodidades.
Diante desse fato trivial, acionar um botão e ser prontamente atendido, sobrando tempo para apreciar que sua ordem foi executada sem nenhum esforço ou movimento seu maior que um leve movimento, mudar o mundo a sua volta sem ter que entrar em ação contra as forças da natureza, ter uma máquina para fazer isso... O homem cibernético, as extensões do eu, a relação entre tecnologia e o ser, o id e os prolongamentos do ser social... blá, blá, blá, blá... daria uma viagem sem volta.
Mas, outro fato dentro do carro num outro dia fez-me mudar o rumo desta postagem. Enquanto eu estava parado no vermelho do semáforo, um vendedor ambulante foi até um ônibus na minha frente e vendeu um amendoim ao motorista. Transação comercial concluída, nosso querido ambulante saiu perambular pela via entre os carros e oferecer seu produto. Logo passou por mim, que desleixadamente como sempre deixava o vidro da janela aberto, praticamente escancarado. Não senhoras e senhores, não houve um assalto, uma tentativa de invasão, ofensas, brigas ou discussões. Se você gosta de sangue, não é o blog correto para ler. O que aconteceu foi simplesmente uma oferta de amendoim, eu recusei e agradeci, ele se despediu e continuou na sua labuta...
Pensei, obvio, como todo brasileiro escaldado pela violência: “porra! Esse vidro aberto aqui e eu dando bobeira, pode acontecer qualquer coisa... que marcação do caralho!”. É assim gente, quando vamos dar bronca, em alguém ou em nós mesmos, sozinho ou acompanhado, o palavrão é sempre bem vindo. O fato é que não é de bom tom fechar o vidro durante o sinal fechado, se o vidro está aberto, continua aberto, porque as pessoas que estão ambulando podem se ofender. Com o carro em movimento, aí sim fecha-se. Mas, naquele caso, nem era uma preocupação minha fechar depois, era o ultimo sinal em uma avenida movimentada em que circulavam pessoa. Além disso, eu já tinha reparado que o vendedor não ofereceria o menor perigo. Enfim, continuei com o vidro aberto, por princípio e porque a noite era bem agradável.
Mas, não pude deixar de reparar à minha volta. Todos os carros, todos, com os vidros fechados. Muitos vidros fumês, muita gente em carros caríssimos, caminhonetes, veículos com desining aeroespacial... incrível como o mundo dos autos desenvolve rapidamente. Enquanto isso eu acompanhava a saga do senhor vendedor. Ele oferecia amendoim aqui e ali caminhando entre os carros. E, pelo menos no minuto que permaneci ali olhando pelo retrovisor, não empreendeu mais nenhuma venda.
É uma pena que façamos ou pensemos assim. Fecharmo-nos para o mundo com muros, grades, chancelas, cercas, vidros. Muitas pessoas ainda desrespeitam o próximo, por medo ou insegurança. Reconheço que crimes e coisas barbaras podem acontecer em um sinal. E não posso condenar ninguém por colocar um vidro à prova de balas em seu automóvel. Mas, também reconheço que existem pessoas trabalhadoras e dignas no movimento dos sinais, pessoas que tornaram esse um meio de sustento. Certo ou errado, são brasileiros cumplices e resultados da nossa sociedade. Pensei na quantidade de vezes que aquele vendedor não teve o vidro fechado na sua cara, na quantidade de vezes que as pessoas se assustaram com a sua aproximação ou nas agressões que ele próprio sofreu por tentar fazer um trabalho desvalorizado como aquele. Porque, se é verdade que andar com o vidro abaixado nos semáforos à noite em São Paulo, também é verdade que existe muita gente babaca e desrespeitoso dentro dos carros. E nem vou falar daqueles maníacos por volantes, gente mesmo que não sabe olhar para o próximo e pensar com o mínimo de empatia.
Com o vidro abaixado pude olhar nos olhos daquele vendedor e não sentir medo ou receio. Nosso diálogo não deve ter demorado mais que dois segundos. Foi muito cordial. Ao distanciar-se do carro, o ambulante me deixou com a impressão de que era gente boa. Sabe aquela pessoa que te cumprimenta e você pensa, poxa, que gente boa? Às vezes precisamos olhar um pouco para fora da nossa área de segurança e pensar em como nossas atitudes individuais de proteção de classe média podem ser vistas por outras pessoas. Tenho certeza que nossa paranoia por segurança é muito mal interpretada por gente digna e trabalhadora Brasil à fora. O excesso de desigualdade social só consegue distanciar e criar barreiras, se pelo menos os impostos fossem progressivos e os programas públicos mais eficientes. Opa! Desculpem-me, havia prometido no inicio deste texto que não falaria dos tributos...
Pois bem, essa história terminou quando o sinal abriu e engatei a primeira marcha no meu possante. Ainda não voltei a ver aquele senhor, que provavelmente continuará circulando entre os semáforos vendendo amendoim, alegrando alguns como o motorista daquele ônibus, assustando tantos outros desavisados.

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