quarta-feira, 10 de agosto de 2011

O sentido das coisas e o raio da circunferência

Quando eu cursava a sétima série do primeiro grau. (Faz tempo isso, ainda era o sistema seriado no ensino público, depois entrou o sistema de ciclos, agora tem o nono ano – enfim, mudou, mudou e nada melhorou – mas a qualidade do ensino não é tema hoje)... Dizia eu, quando cursava a sétima série do primeiro grau, tive aulas de desenho geométrico. Não sei porque cargas d’água esse conteúdo caiu na aula de educação artística. Só sei que o pobre do seu Roberto, professor de Educação Artística, teve que se virar nos trinta pra ensinar aquela pivetada que não estava nem um pouco interessada na aula dele a dividir o circulo usando uma régua e um compasso.

Me lembro bem da inutilidade do conteúdo. Só uso hoje a divisão do circulo para cortar a pizza, mas mesmo assim não faço questão da precisão nos pedaços – fora que ainda prefiro cortar em cubos estilo aperitivo. De qualquer maneira, estávamos lá mês todo aprendendo a dividir o circulo em quatro partes iguais, cinco, seis, sete, oito e infinito. Dividir em quatro partes iguais é fácil: traça uma reta de um ponto ao centro e estende-a ao outro lado, depois, partindo do raio, traça um ângulo de noventa graus e faz outra reta. Também me lembro de uma técnica pra dividir o circulo em seis partes: pega o compasso e abre do raio à circunferência (aquela abertura é aproximadamente 1/6 do circulo) e vai usando o compasso com a ponta e o traço para marcar a circunferência do circulo – no final fica um restinho que não completa a volta toda, mas aí vc desconsidera (rs*). Lembra da formula da circunferência? C=2PIr; se PI é igual a 3,14 então o você multiplica o raio por 3 vezes (do pi) mais 2 da fórmula. Sobra um espaçozinho, 0,14x2, mas pra um aluno de sétima série era o máximo saber até que aquela fração que não fechava a divisão completa da circunferência por conta da fórmula do PI e que dá justamente a precisão da circunferência...

Enfim, já as divisões mais precisas, precisavam de alguns traços mais complexos. Recordo que deveríamos ligar algum ponto do circulo, traçar espaços externos, fazer ângulos de 45°, 60° ou 90° dependendo da fração do circulo que queríamos desenhar e o desenho a partir da circunferência parecia ao final um olho: mais ou menos assim , com as retas traçadas a partir da circunferência e vários ângulos desses cruzamentos... #tantofaz, mesmo porque nem sei mais se alguém aprende essa gororoba hoje em dia.

Nessa época eu tinha um grande amigo chamado Rogério. Era na casa dele que eu ficava quando tinha algum trabalho pra fazer ou algum jogo de futebol pra ir. Porque eu morava em uma cidade, estudava em outro e quanto precisava ficar até mais tarde, eu ficava na casa dele porque não havia ônibus à noite (enfim, coisas do interior). O Rogério ficou doente justo na época em que o seu Roberto começou a explicar essas técnicas de divisão da circunferência. Rogério passou um mês doente. Desde que estudamos juntos foi sua pior crise, internado e tudo coitado. Lembro que na época ficamos até bem preocupados. Enfim, meu amigo perdeu todo o conteúdo dessa matéria e pra o azar dele, já no seu primeiro dia de retorno as aulas (sorrindo, feliz, contente) teve que encarar uma prova de educação artística em que o conteúdo era a divisão do circulo em desenho geométrico.

Rogério não sabia absolutamente nada. Caiu de paraquedas perdido, não só no conteúdo, mas acho que também não tinha a menor disposição pra ficar ali fazendo traços, curvas e retas. Enfim, olhou pra um lado, viu alguém fazendo aquela espécie de olho. Olhou pra outro lado viu mais ou menos o formato da outra figura. Fez logo um circulo e começou a criar sobre aquilo. Mais cedo ou mais tarde Rogério levantou-se do seu lugar com a prova na mão e foi em direção a mesa do seu Roberto. “Professor, tá bonito?”...  e apontou sua prova em direção ao professor. “É, mas tá errado”! “Ahh, mas tá bonito”... Eu, no meu cantinho, me matei de rir com aquele diálogo. Trocaria de prova com ele fácil...

Sei lá o que Rogério tinha desenhado, ele fez alguma coisa engraçada sobre o circulo, caprichou e, embora não tenha precisamente dividido o circulo, ele deu uma ressignificação a tudo aquilo. Sabia que ia tirar zero na prova, sabia também que não tinha feito nada do que o professor pediu, mas ele sabia também que era bom aluno, inteligente e capaz. Não se abalou por não saber aquilo, tratou o desconhecimento com bom humor, deu novo sentido ao seu papel e, além de tudo, ele foi capaz de não se abalar com isso. Talvez por saber que aquela ausência de um mês era a principal causa por ele não saber fazer aqueles exercícios, pensou que ser avaliado em iguais condições em relação aos outros seria desleal. Meu amigo não se abalou, foi lá e se divertiu com a situação. Confesso: me diverti junto.

Pode ter certeza que Rogério está bem hoje, já na sétima série sua educação estava completada e não tinha mais como dar errado. Ele estava preparado pra encarar o futuro. Aprender e desaprender não define quem você é. Ter técnicas ou não tê-las também não são definidoras de capacidade... Rogério, antes de tudo, sabia que era capaz de aprender, e que na ausência do aprendizado daquele momento, teria tempo para recuperar, passar de ano e seguir adiante, não deixou com que sua autoestima fosse abalada por um simples zero, que embora tenha o reprovado na divisão do circulo, não foi capaz de avaliar o desenho bonito do olho que ele se propôs a fazer... Rogério já sabia muito bem seu lugar diante das convenções sociais.

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