terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Seu Eldesio, o grupo Pão de Açúcar e o sistema laboral brasileiro

Enquanto eu esperava na fila para passar meus raros quitutes num caixa do supermercado Pão de Açúcar, via distraído a movimentação do Seu Eldésio colocando as compras de um casal no caixa ao lado. Seu Eldésio devia ter lá seus surrados 70 anos, suas mãos tremiam, mas nem sorriso e nem a simpatia fugia do rosto. Pelo que entendi no diálogo entre aquele funcionário do supermercado e o casal servido por ele, pediu-se uma caixa de papelão para empacotar as compras.

Agora, pense comigo nobre leitor: recentemente o IBGE divulgou uma pesquisa afirmando que 100% das donas de casa usam saquinhos de supermercado para o lixo. Supondo que isso seja verdade – provavelmente é questionável para a realidade de Paraisópolis, mas não deve ser para os clientes das redes Pão de Açúcar – aquele casal fugia às estatísticas. Tinha, possivelmente, uma rara consciência ecológica e a praticava, o que é mais difícil. Fiquei então intrigado com meu raciocínio e em alguma medida incomodado com a situação. Por que aquela rara consciência ecológica não seria paralela a uma consciência social?

Me explico ante à confusão de raciocínio. Seu Eldésio provavelmente trabalhava por necessidade. Pode ter aposentadoria do INSS ou então algum tipo de aposentadoria dos programas sociais do governo. O que lhe garantiria uma renda mínima de no máximo R$ 500,00. Com um trabalho como esse ele pode complementar sua renda com sei lá quantos reais. O fato é que muita gente acha que ao permitir que este senhor empacote mercadorias é bom pra ele porque tem emprego. Essa é a consciência social do assistencialismo brasileiro. Mas é uma falsa idéia no sentido de que nossas políticas sociais são falhas o suficiente para não dar dignidade nem aos idosos, os sujeitando aos mais humilhantes subempregos; como ficar na fila do banco para agilizar determinadas operações financeiras de escritórios.

Além disso, temos na nossa sociedade uma dicotomia inviolada que teima em permanecer: Casa Grande e Senzala. A sociedade brasileira é dual. Alegoricamente posso dizer que quem não vive na Casa Grande ainda faz o serviço da Senzala. Bem, por isso nossa classe média tem empregadas domésticas, as padarias têm manobristas, os supermercados têm empacotadores e os restaurantes têm garçons e serviçais à mil. Porque o trabalho nesse país é divido entre trabalho “digno” e trabalho “não digno”. Agora, racionalmente, qual a diferença entre um empacotador e um operário de uma fábrica? Nenhuma. Do ponto de vista funcional, das habilidades motoras, da resistência ou da apreensão da função? Nada. A diferença é que nem todo mundo pode ser operário. E que não há tanto emprego “digno” de um bom salário na economia brasileira. Por isso sobram trabalhos como este, indignos (porque paga-se muito mal por isso), para seu Eldésio.

Em uma economia minimamente séria todo trabalho merece recompensa alta. Assim, qualquer atendente de caixa ou garçom em um país desenvolvido ganha bem, muito bem. E o preço é revertido na conta do cliente, por isso muita gente percebe a diferença entre comer na mesa e no balcão quando vai para a Europa. Lá, não há empregada domestica porque elas são caríssimas e a classe média bota a mão no detergente sem dó. Mas, aqui, lavar, passar e cozinhar é serviço da Senzala, não da casa grande. Empacotar, estacionar, servir, são coisas que a classe média exige acesso e quer que seja barato.

Outro dia vi num sol escaldante ao meio dia duas meninas seguravam bandeiras de uma construtora que vendia apartamentos duas quadras dali... Mas que raio de propaganda era aquela? Porque esses bolhas não compraram esse bonecos de posto de gasolina e não deixaram chacoalhando? Ou sei lá, uns bonecos de madeira como esses que seguram as bandeiras de trânsito. Opções são inúmeras, mas isso só aconteceu porque tem gente que se sujeita ao ridículo por uma quantia irrisória.

Gente como o Seu Eldésio é pago pelo preço que encontramos nas mercadorias. Mas, não sentimos o peso deste custo porque seu salário é tão medíocre que o custo operacional do grupo Pão de Açúcar pouco se altera com o acréscimo dos empacotadores... e o que mais me incomoda é que parece que estão realizando uma função social.

Não! Essas pessoas precisam de empregos dignos e nós precisamos parar de nos conformar com a idéia de que alguém vai arrumar nossa bagunça, limpar nossa sujeira, estacionar nosso carro, empacotar nossas compras, servir nosso cafezinho. Falta educação? Sem duvidas, mas é preciso também gerar oportunidades de melhorias sociais com a educação. Não entupir as escolas de garotos perdidos pra inglês ver.

Por mais que eu pensasse que aquele senhor tinha inúmeros motivos para amarrar a cara, ele teimava em sorrir. Deve ser parte do trabalho pensei eu... No final da compra confesso que até fiquei feliz porque seu Eldésio ganhou uma gorjetinha. Da moça que mais parecia uma dama de paus parada enquanto o cara fazia tudo ele recebeu só 25 centavos (torci o nariz), mas o cara deu uma quantia razoável de moedas depois que ela saiu. Moral da história, sendo salário ou não, o fato é que no final qualquer esmola resolve.

2 comentários:

Andrea de Godoy Neto disse...

A realidade nua, em um texto muito bem escrito e palavras afiadas...

Espero ainda construirmos uma realidade diferente.

abraço

Anônimo disse...

gostei