domingo, 10 de janeiro de 2010

Da faculdade do julgamento

Nas mais antiquadas discussões das ciências sociais questionam-se qual faculdade torna o homem um ser único na terra. O que torna-nos humano e nos diferenciam dos animais? Muitas são as explicações a esse respeito. Para Marcel Mauss, a dádiva era uma forma de sociabilidade que nos distinguia dos animais. Em outros, como Claude Levi-Strauss (fundador do estruturalismo), a origem da sociabilidade está na negação do incesto. O fato é que nas ciências sociais já não se discute mais que condição genética nos distingue dos outros animais, como Darwin procurava as características que selecionavam as espécies.

E para evitar esse debate infindável, definamos arbitrariamente que uma das faculdades mais importantes do homem, que o destingue de qualquer animal na terra, é sua capacidade de julgar. E esta faculdade está intrinsecamente ligada a nossa moral. Se temos moral temos distinções dentro de nossa sociabilidade, se temos regras sociais instituímos o certo e o errado e nossas dicotomias tornam-se fundamentais dentro das nossas categorias de análise. Bom e mal, belo e feio, verdadeiro e falso, digno e indigno, leal e desleal, fiel e infiel, fidelidade e traição, e, finalmente, justo e injusto, distinguimos segundo categorias básicas e dicotômicas. Funcional? Sem dúvidas, mas só quando não há exageros.

Nossas categorias de pensamento servem ao nosso juízo moral. E nossa moral sem dúvidas serve à preservação da espécie. Nossas condições básicas de sobrevivência vão de alimentar-se, abrigar-ser e vestir-se. Os demais avanços no campo tecnológico ou cultural geram apenas excedentes. Evidentemente vivemos mais e confortavelmente melhor, se mantemos um nível de coesão ampliado. Mas, a vida em sociedade torna-se mais complexa e exige outras regras sociais que vão além, e muito além, da nossa condição pré-civilizatória. A moral do homem civilizado é maior que a moral do primata. As morais aumentam os pudores.

Agora chegamos ao ponto em que gostaria de destacar nesta postagem. A nossa faculdade do julgamento pode ter nascido com nossa própria condição humana. Não nos reconhecemos como homens sem incorporar ao nosso comportamento um mínimo de moral – um mínimo de distinção entre o certo e o errado. Talvez nos primórdios o certo e o errado garantiam a preservação do grupo, mas hoje, certo e errado formam uma teia de comportamento social que servem aos mais diversos interesses, desde o altruísmo da espécie até o egoísmo de determinadas pessoas.

Nossas sociedades desenvolveram em seus membros uma exagerada capacidade de julgar. A todo o momento estávamos reconhecendo condutas, avaliando e julgando segundo nossos critérios de comportamento. Em geral realizamos vários impropérios, tiramos conclusões idiotas ou cometemos gafes ao avaliarmos o comportamento do semelhante e taxarmos indiscriminadamente segundo nossas expectativas. Julgamos e somos julgados a cada instante. E embora isso não tenha reflexo legal, sempre acaba por ter algum tipo de reflexo quando se tratam de grupos sociais. Julgamos nossos semelhantes, nossos amigos, nossos companheiros e companheiras, julgamos nossos familiares. Sempre segundo critérios que não são neutros, mas egoísticos.

Quando fundada a justiça, a preocupação dos grandes líderes era em relação a sua imparcialidade. Não matar. Não roubar. Não levantar falso testemunho. São regras básicas de conduta pré-cristã. Ajudaram a preservar os grupos sociais. São regras necessárias ao mínimo de convivência pacífica e os que as violavam recebiam forte punição social. Mas, outras regras incorporadas a essas foram aos poucos sendo utilizadas para garantir um mundo desigual, às vezes justo, às vezes injusto, mas certamente sectário. Garantir a propriedade privada, baseada em leis do trabalho e do dinheiro, certamente induz ao compromisso com a produção, mas com certeza é sectária.

Julgar o próximo significa dizer a ele não o que ele deve fazer, mas como ele deve se comportar segundo nossa moral própria e não segundo a liberdade que lhe é concedida. Quando existem regras escritas, as pessoas que passam a ser policiadas pelas instituições da sua sociabilidade. Mas, para além das instituições sociais legitimas existem as instituições reconhecidas entre os grupos: religião, família, negócios, grupos de interesse, etc. Segundo os critérios de cada grupo social há um comportamento esperado e um comportamento permitido. Algumas vezes permitimos certos comportamentos, mas não esperamos que ele seja executado. No meu time de futebol é permitida a falta como em qualquer jogo normal. Mas, entre meus amigos da pelada, uma falta mais dura é taxada como desleal e digna de repreensão do grupo. Um católico às vezes julga mal um protestante, e vice e versa...

Entre as figuras mais interessantes que conheci na vida, as que tinham menos preocupação em julgar e mais preocupação em entender, chamaram minha atenção como pessoas diferenciadas e de certa forma com um nível sociabilidade acima da normal. As vezes consideramos essas pessoas como de bom coração, mas não é só isso. Essas pessoas realmente tem uma capacidade impar para não oprimir o próximo e permitir que cada um siga seu rumos segundo seu próprio juízo. Parece pouco, mas é basicamente uma forma de não forçar pessoas a seguirem seu modo de vida. Independente do tipo de formação que essas pessoas tiveram, sempre me foi admirável perceber que não julgar as torna diferenciadas.

Interessante como a faculdade do julgamento não se expressa no cotidiano como se expressa nossa mais nobre ideal de instituição da justiça – segundo critérios positivos, neutros que se reservam à preservação da moral coletiva e ao desenvolvimento da sociabilidade. Nos critérios individuais de julgamento impera o nosso ponto de vista egoísta segundo uma moral individualista e que obedece nossos mais mesquinhos desejos. Quando julgamos nossos pares inevitavelmente julgamos segundo nossos desejos, ambições e de acordo com nossa posição dentro do processo. Por isso a justiça propõe-se a afastar do processo os interessados diretos. Mas, por isso também é tão difícil ser justo com nossos pares. As pessoas que se abstém do comportamento de julgar conseguem manter-se afastados das injustiças que cotidianamente cometemos, porque não há nada mais cruel que fazer com que uma pessoa, a favor ou contra sua vontade, se sinta coagido a agir segundo critérios que outro as impõem para que apenas obedeça a necessidade egoísta de não tolerar que outras formas de comportar-se legitimem-se.

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