quarta-feira, 25 de abril de 2012

Cristina Kirchner, a herege

Tente acompanhar a seguinte cena: ajoelhados diante do altar, todos acompanham em uníssono celebrando a mesma oração. Enquanto alguns sacerdotes ditam os princípios, os fieis repetem mundo afora em todas as línguas possíveis. Eles comungam das mesmas orientações e têm o mesmo comportamento, numa profissão de fé. Não, a cena que visualizo não é a de uma Igreja, onde num altar estaria uma cruz. O que vejo é a adoração por cifrões e as orações não são religiosas, mas cálculos de ganhos reproduzidos mundo afora. Os princípios não são morais, mas de condições para a geração de lucro. E a comunhão não é o corpo e sangue de cristo em uma hóstia, mas o sangue do trabalho que se transformam em dólares.

E nada explica melhor a ciência econômica do que sua crença na racionalidade do homos economicus. Se Santo Agostinho definia os riscos do pecado ao seu rebanho, Keynes falou da irracionalidade do comportamento de manada aos investidores. Ambos, ao seu modo, pactuavam com o poder das instituições reguladoras do credo. Para isso se fazem necessários os guardiões e o exercito protetor dos fundamentos, porque a história sempre colocou hereges em contraste com os crentes. De tempos em tempos pobres almas fracas possuídas pelos demônios aparecem para desafiar a fé dos fiéis. Em resposta a isso estão sempre alerta o exercito da salvação do mercado, os financistas de Wall Street e seus representantes nas consultorias, nos think tanks e até mesmo nas universidades, todos no papel de convencer o Estado a intervir em favor do mercado.

Mas, essa Cristina Kirchner, que embuste, não entendeu nada. Se no mundo real seria só uma presidenta defendendo suas posições de governo, no mundo dos fundamentalistas radicais, como não é branco, é preto. E se nesta nossa terra abençoada por Deus ganhamos uma SanDilma, nossos pobres vizinhos amargam essa Bruxtina. Difícil garantir estabilidade no sistema com essas mulheres volúveis em governos; basta um pecado de um lado e uma hóstia comungada do capital do outro pra tudo se inverter – muito cuidado você que quer ser analista, pode parecer mais um desses marxistas pagãos.

Cristina foi eleita em outubro passado com apoio popular o suficiente para vencer já no primeiro turno. Certamente sua representatividade lastreada no voto não foi democrática, só a feitiçaria populista explica.  Se na era pós-FMI da Argentina dos Kirchner identificou-se tanto apoio popular para questionar os mercados, isso não é democracia porque deve estar baseado em algum pecado político como acontece em lugares alhures: Venezuela, Equador, Bolívia e a terra maldita de Cuba.

Enfim: foda-se que a eleição da inimiga do povo foi tão legitima em termos de sucessão quanto qualquer outra democracia ocidental moderna, republicana e liberal. E é proibido dizer que a bula papal do neoliberalismo seguida na argentina entre 1990 e 2001 levou o país ao seu pior momento histórico, e também é erro de interpretação explicar que hoje o país tem melhores indicadores socioeconômicos porque não segue as recomendações do mercado. Esses fatores responsáveis pela vitória da herege no primeiro turno são sintomas de contaminação – de ordem canônica a Argentina converteu-se desgarrado filho pródigo entregue aos pecados mundanos e só poderá ser absolvida de seus pecados depois de pedir perdão.

Se a papisa Thatcher começou uma reformulação do credo em 1980 com privatizações, reformas financeiras e combate ferrenho aos sindicatos, a expansão capitalista para o mundo periférico fez sua parte entre os pobres: conseguiu domesticar nações de infiéis e os colocou no caminho sagrado das leis do mercado. Sem a mundial aceitação dos preceitos bíblicos dos teólogos do monetarismo e seus evangelistas como Lehman Brothers, JPMorgan, AIG e Goldman Sachs e tantos outros apóstolos esses mesmos preceitos não poderiam ter se tornado dogmas tão sólidos e cativantes. Mas basta um país questionar para que o credo possa perder fieis e cifras, por isso torna-se tão perigosa nossa vizinha bruxa, com sua capacidade de seduzir para limitar o ímpeto dos lucros financeiros e royalties. Mau exemplo.

Agora, Cristina em sua atitude de herege passara pelo rigoroso julgamento da inquisição acusada de bruxaria contra o mercado; tal qual mulheres que padeciam na fogueira na idade média. Seu maior erro: ela colocou o Estado à frente do mercado – pecado capital do mundo econômico. Pior, ao estatizar a YPF fez o que todos temem, questionou o poder da propriedade privada – encarnação sacramentada da religião mercantil ao qual devemos adorar. Todos os fiéis devem reagir, desviar o dinheiro daquele país, escandalizar-se, polemizar, acusar sua culpa...

Pois eu nunca vi na história tanta gente apedrejar uma presidenta travestida de bruxa enquanto ajoelham-se aos símbolos sagrados do capitalismo.

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