segunda-feira, 25 de outubro de 2010

A cova do jornalismo brasileiro

Deixei de comprar o jornal a Folha de São Paulo desde que o editorialista disse que no Brasil não houve ditadura entre 1964 e 1982, mas “ditabranda”. O jornal, fazendo um trocadilho, do sufixo “dura” para “branda” reinterpretou a história, ignorou pesquisas, depreciou inúmeros documentos (entre eles o exemplar caso de “Brasil: Nunca Mais”), desfez consensos e abalou memórias construídas em torno do fato. Não pode um jornal, seja ele qual for, reinterpretar arbitrariamente a história. Isso me lembrou demais o livro de George Orwell: 1984. Ali, a ditadura reinterpreta a história e refaz o mundo para manipular fatos é um recurso linguístico importante para o controle da consciência coletiva.

Evidentemente que se comparada às irmãs ditaduras de Argentina, Chile e Uruguai (para ficar no cone Sul), a ditadura brasileira dos anos 1960/70 teve menor intensidade. Eleições foram mantidas, nacionalismo acirrado, participação de elites no poder. Mas, isso não significa que o regime deixou de ser ditadura por conta dessas condições. Direitos políticos cassados, presos os esquerdistas e seqüestrados todos os seus direitos civis; mortes misteriosas, torturas, desaparecimentos. O Estado se resguardou ao direito de não dar satisfação sobre as ações que considerava “estratégias de segurança nacional”. Ditadura. Deixei de comprar o jornal. Não tolero a tentativa de apresentar aos seus leitores uma visão da história que interessa só e somente aos seus comparsas. Não sou obrigado a aceitar isso.

Confesso que no começo foi difícil. Ler o jornal aos domingos era uma instituição. E diferente do O Estado de São Paulo, a Folha tinha uma equipe de colunistas que me agradava. Verbo no passado, porque aos poucos nem mesmo os articulistas sustentavam meu agrado com o jornal. Mudei para o Estadão por conta da linha jornalística mesmo. Havia no Estado reportagens melhores e uma cobertura internacional mais completa. Embora, em se tratando de opiniões, O Estado de São Paulo não tinha melhores comentaristas que se destacava, caracterítica marcante da Folha.

Recentemente estou à rever minhas opiniões a respeito do Estadão. Se seguirmos o critério jornalístico de investigar e dar espaço às varias versões, sabemos que a VEJA é a pior revista do país. Não é novidade, a revista tem apoiadores e inimigos – e faz jornalismo calcada nisso. Uma coisa é fazer jornalismo, independente de inimigos e amigos, e depois colocar sua própria visão. Outra coisa é dar ouvido aos amigos e censurar o direito de resposta aos inimigos. Pior ainda, a VEJA concentra esforços em revelar ou deturpar fatos para queimar os inimigos e justificar os amigos: faz política, faz ideologia e com isso faz péssimo jornalismo. Sobre a Folha são conhecidas as histórias de sua relação com a ditadura; quando emprestava seus carros aos torturadores do DOI-CODE para se identificarem com civis e não como militares.

Quando o Estadão colocou sua posição de apoio a Serra no seu editorial, não achei nada estranho. Faz parte e dá pra fazer jornalismo declarando suas preferências e as justificando. Mas, quando torna essa preferência o critério do jornalismo, ai me desculpe, mas não vou financiar propaganda alheia. Ao Estadão, nesta eleição, talvez em menor intensidade que a VEJA e a Folha, vale a máxima: aos amigos tudo, aos inimigos a Lei.

Não apoiar o PT, Dilma ou criticar Lula é direito do conselho de qualquer jornal. Mas, demitir jornalista que escreve criticamente, perseguir notícias depreciativas ao governo, investigar somente assuntos que interessam ao grupo político de Serra e ignorar questões que o deixam em saia justa é fazer jornalismo parcial.

E não confundamos a “imparcialidade” com o desprovido de posição.

Jornalismo “imparcial” não é neutro, nem ter uma reconhecida visão de mundo. Ao contrário, é, ao saber disso, seguir o manual para não ser injusto. E o manual manda ouvir ambos os lados, ter o mesmo peso e a mesma medida para fatos polêmicos, explorar vários pontos da questão, dar a mesma oportunidade de defesa e acusação, investigar fontes e dar as diferentes posições espaço para o debate. Tudo bem que com todos esses cuidados ainda venha a sua posição; torne então clara a diferença entre o que são os fatos e suas posições sobre eles.

Mas, não é isso que está ocorrendo. Como leitor, exijo jornalismo e não parcialidade. Estão usando minha assinatura do jornal para fazer campanha. Não é possível permitir isso de minha parte. Aqueles que se sentem representados por isso, paciência, mas não é meu caso. Se os jornais e revistas querem fazer das suas páginas uma tribuna, o negócio tem essa prerrogativa. Mas, meu papel não é financiar este negócio. Isso é coisa dos apoiadores da linha editorial dos veículos de comunicação. Como leitor, compro jornalismo, se recebo ou não opinião do editorialista isso é pra me ajudar a distinguir a opinião do jornal dos fatos que estão sendo discutidos e não para fazer minha cabeça como leitor. Mas, se compro opinião que me traz interpretações desvirtuadas de fatos, compro falsificação ideológica, não jornal. Muitos estão assinando esse pacto de mediocridade: fingem que compram notícias enquanto são os jornais que criam os fatos. Nessa história tão assombrosa do que acontece hoje, já é difícil saber o que é mesmo fato e qual seu peso do que não é fato, há uma nonsense desmedida.

Infelizmente vou precisar rever meus cafés aos domingos. Porque durante os últimos 10 anos ele foi regado ao jornal. Mas, o Jornal de 10 anos atrás suponho que era melhor em vista do atual. Deve ser saudosismo. Ou coisa de velho. Quem me conhece sabe o quão rabujento sou. Mas eu gostava do extinto jornal de resenha, das discussões filosóficas que antes existiam ou das grandes entrevistas. Tenho a impressão de que chamado jornalismo de hoje possa estar em uma crise sem precedentes. Crise que não tem relação direta com a internet ou com o fim do papel, mas com a esquizofrenia das pessoas por detrás do computador e do modo como estão lidando com seus leitores: uma massa acéfala (na pior das hipóteses); ou o consumidor de sabão em pó (na mais cândida das hipóteses).

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