Em 2000, na bienal do redescobrimento, a exposição que mais me impactou foi a que estava nas “imagens do inconsciente”, de Arthur Bispo do Rosário. Reza a lenda que o jovem marinheiro teve uma visão, subiu no mosteiro São Bento em São Paulo e disse que era um enviado de Deus. Isso lá pelos anos quarenta do século passado. Resultado: foi internado num manicômio e tido como louco.
Passando o resto da vida entre a internação e a liberdade provisória, Bispo reuniu um sem número de quinquilharias e fez daquilo arte.
Podemos olhar essa história por diversas perspectivas. Isso é o que mais me agrada. Se quisermos falar de arte, podemos citar os trabalhos do Bispo, se quisermos falar da história da psiquiatria brasileira, podemos citar seu exemplo, se quisermos falar de concepção de mundo, cosmologia, também podemos falar de Bispo do Rosário.
Bispo é do tempo em que pessoas com problemas psíquicos eram internadas, excluídas ou privadas do convívio social e colocadas nos chamados manicômios. A psiquiatria e as políticas públicas para os doentes psíquicos mudaram desde então. Mas as marcas do processo continuam. Hoje, existe um serviço de atendimento ao doente psiquiátrico, mas os tratamentos são complexos e a estrutura do SUS é pouco equipada para lidar com esse tipo de problema. Embora, longe das grades de um manicômio qualquer doente tem mais condições de vida digna, falta muita estrutura para lidar com esse tipo de problema.
Mas: qual era a “loucura” do Bispo então? Ele se dizia um enviado de Deus para anunciar o fim do mundo. E sua missão? Conseguir acumular o maior número de informações para reconstruir o mundo depois da destruição. Bispo do Rosário dizia que poucos iam sobrar depois do fim do mundo, ele (obvio) e alguns eleitos e que caberia aos remanescentes reconstruir o mundo em que vivemos. Assim ele constrói sua “arte”. Plenamente funcional: era a memória do mundo. Tudo que podia ser resgatado para lembrar o mundo atual era devidamente colecionado e catalogado. A obra mais intensa do Bispo é seu manto, onde ele bordou nomes de mulheres. Sua coleção que visava guardar o nome de todas as mulheres que pudesse para manter a memória do mundo.
A missão de Arthur Bispo do Rosário coloca os doze trabalhos de Hércules no chinelo. Imagine o que é reconstruir a memória desse mundo. Sem estrutura, sem recursos, sem espaço. Essa é a grande arte do Bispo, sua genialidade. Tudo passa a ser passível de memória. Um carrinho de plástico pode ser a memória automobilística. Utensílios domésticos, roupas, quinquilarias, lista de objetos e tudo que seria descartável se tornaram memória do mundo na concepção de Bispo do Rosário. A arte tem dessas coisas, inverte ou subverte o sentido das coisas. Ou revigora a significação dos objetos.
Do ponto de vista da construção do mundo, a visão do Bispo é muito interessante. A exposição me levou a pensar o que fizemos do mundo. Ou o que é o mundo para nós. Somos seres que tornamos natural o artificial. Acostumamo-nos a comer com ferro, a andarmos sobre borracha, a viver sob barro. Apenas transformamos a matéria prima, usamo-nos de estética, mas o mundo é um acumulado de objetos inanimados que adquirem significados. A coleção do bispo e sua cosmogonia me impressionaram; tanto que oito anos depois ainda é nítida a imagem de um artista que queria reconstruir o mundo sob sua miséria e não na sua riqueza.
Todos temos um pouco de Bispo em nossas vidas. As casas são um pouco do que trazemos do mundo para nosso convívio. A impressão do mundo que nos agrada. Ninguém, evidentemente, anda com um manto bordado com uma infinidade de nomes de mulheres ou faz coleções e listas de tudo que encontra pela frente. Mas, é considerado normal pelos nossos padrões que quando gostamos de uma quinquilharia qualquer levamos para casa. São significações que damos ao nosso mundo é um pequeno universo que formamos para nosso sentido – uma foto aqui, um objeto ali, uma decoração acolá. Ao fim, o que nos restará além de memória? Nossa em relação à vida e dos nossos em relação a nós...

MUSEU BISPO DO ROSÁRIO ARTE CONTEMPORÂNEA.
Rio de Janeiro, Estrada Rodrigues Caldas, 3.400 – Jacarepaguá)
Um comentário:
gostei bastante
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